domingo, 18 de julho de 2021

CRÔNICA - ESTAÇÃO DAS CHUVAS EM ABRIL

 Estação das chuvas em abril


         

          Quando começou a chover ele ouviu que era madrugada. Acordou dentro do sono e sentiu o rescaldo da escuridão do quarto sobre seu corpo. Parou um pouco de pensar para compreender se já estava acordado, olhou dentro da treva e o escuro do quarto cresceu mais o abatendo sobre a cama. Voltou a pensar, já estou acordado e está chovendo lá fora. Voltou-se para a parede, todas as tábuas da cama rangeram, aquietou-se ouvindo. Não, ninguém dentro de casa. Todo mundo dormindo, mas ele acordado, e a chuva também estava acordada e chovia lá fora. Uma chuva constante e dura que batia no telhado. Teve a primeira sensação do frio, começara a fazer frio lá fora depois que a chuva viera e o vento entrava pelas frinchas da cumeeira. Puxou o lençol, mas os pés ficaram descobertos. E tinha seu braço direito que havia dormido sob seu corpo agora ele voltava a senti-lo. Respirou o ar do quarto e o ar do quarto tinha cheiro de chuva. Então agora seus pensamentos vinham acordados e ele podia-se compreender como uma pessoa deitada na cama, mas acordada trabalhando lembranças, limando ideias. A chuva vinha com o vento e o vento passava atrás da casa e ele sabia que agora a figueira se retorcia no vento e se molhava na chuva. Quando tinha começado a chover então? Ele vira que muito se tinha esperado a chuva, mas a chuva não viera em janeiro. O sol tinha secado a terra e a terra tinha secado as plantas e as plantas vinham secando a paisagem e o sol tinha bebido pedaços completos do rio. Ele vira peixes que morreram sem ar presos na lama do rio, ele vira pedras escuras aparecendo no leito do rio e vira os sapos desertando do rio. Depois o cantarino tinha descido da serra e o estio permaneceu até que começou a soprar o alísio e as formigas tinham começado a cortar folhas e levar pra baixo da terra. Ele tinha visto esse trabalho das formigas durante todo março e precisou catar as formigas da roseira e da murta. Quando a chuva chegou ele viu, e veio primeiro em gotas largas e brutas no fim da tarde, queimou a terra, mas só molhou muito a terra quando já era começo de abril. A quaresma havia se estendido naquele ano. Incomodou-se a posição assumida antes. Assim não dormiria meu deus! Então para pensar mais acordado ele deitou-se em decúbito na cama olhando para cima, mas vendo apenas camadas de trevas avolumando-se no quarto. Foi o carnaval que não foi em fevereiro, se disse. Fechou os olhos pensando em tudo que havia feito naquele tempo. Mas não chegou a completar nenhum pensamento sobre essas lembranças, só começou a pensar numa coisa e essa coisa era o tempo. Mas pensar no tempo não o acalmava porque sentia que o tempo era uma coisa lisa e invisível. O tempo não estava nos relógios, e ele tinha compreendido isto quando o relógio da sala apareceu refletido no espelho sobre o aparador e depois quando ele viu as frutas vincando-se de ferrugem na fruteira e se disse, não é tempo que passa nas frutas, são as frutas que vão passando no tempo, pois o tempo já está completo, não há espaço entre os minutos, não há fissuras nos dias e nos anos, as coisas e nós é que estamos dentro dele, vestidos nele, amparados pela sua mão eterna.

         Não se tranquilizava nada com estas ideias puras e era preciso voltar a dormir agora, pois choverá até de manhã. Abril tinha ficado assim sendo a estação das chuvas. Concentrou-se na chuva para esquecer que podia continuar pensando em outras coisas que não lhe trariam o sono e o esquecimento para voltar a dormir. A chuva lavava o telhado, ouvia a água caindo na biqueira da casa. Atrás da casa a chuva formava um córrego no terreiro e ele ouvia a água descendo na terra, ouvia a água carregando pedras, descendo o barranco. Quanto tempo mais ficaria assim acordado? O que ele ouvia era a chuva e o que ele ouvia era o vento. As aves noturnas estavam nos seus ocos de pau. Lembrou-se da coruja que dormia no buraco do descampado. Se não voou morreu afogada. Subitamente um grande claro entrou no quarto pela telha vã, rápido, mas sólido, pois ainda ele viu os caibros do teto e as telhas limosas. Nitidamente o trovão vinha rolando nas nuvens, cairia bem em cima da casa, cairia em cima do quarto. Quebrou-se todo sobre a casa, partiria o telhado, queimaria as folhas mais altas da figueira. Puxou o lençol para pés e teve a sensação de que a cama não lhe cabia mais. Que horas viera dormir? Que última coisa fizera antes de dormir? Tinha um livro, era um livro com gravuras. Um livro era uma coisa dura na qual ele podia se amparar para voltar a dormir. Mas onde forças pra levantar, andar pelo quarto, acender a luz e tomar o livro? Pensou no livro, mas a chuva recrudesceu. Pensou na chuva. O vento arrastava a chuva que eram gotas de aço nas telhas. De repente o estrondo lá longe, de repente o estrondo em cima da casa. Os elementos em fúria. A água, o fogo, o ar e a terra rebelados. Encolheu-se. Sentiu medo. Esperou com o coração parado no peito e a atenção voltada para a chuva. Ouvia. Ouvia. Ouvia. Mas era preciso parar de ouvir. Tinha sonhado? Assim quis se lembrar do sonho que tinha tido. Mas ele não sabia se tinha sonhado ou pensado num sonho. Era ele sobre uma pedra e tinha Jonas no sonho ou no pensamento. Ele nu, mas não chovia e a água escorria nas pedras e era uma água limpa de riacho. Mas isso não era um sonho era uma memória muito antiga. Quando tinha sido aquele acontecimento? Ele só podia ser menino quando. Hoje nunca mais. Voltou-se para o outro lado de costas para a parede. Não tinha ninguém na casa. Ou ele estava morto? Se fosse um morto pensando estaria enterrado e como estava chovendo lá fora já teria sentido a água molhando seu corpo morto. Ele tinha vergonha de estar assim com medo pensando com o coração aos pulos. Voltou à posição em decúbito, as mãos trançadas sobre o ventre. Onde o dia claro? E lá longe, bem dentro da chuva foi que ele ouviu. Primeiro com uma sensação de desconforto no pensamento depois um grito claro e brusco. E era um quero-quero atormentado no brejo. Respirou. O ar tinha gosto de chuva. Logo as telhas estarão completamente úmidas e se formarão gotas enormes no barro molhado. Cobriu-se todo, mas os pés ficaram descobertos. Pensou que quando amanhece a paisagem toda estaria lavada e o passaredo acordaria lá na figueira. Haveria flores na mata, o mulungu alegre. O rio cheio. À tarde cairiam as tanajuras dando atropelos na cal branca da parede da casa. Mas não se consolou com estes pensamentos. Abriu os olhos sob os lençóis, sentiu-se opresso. Talvez tivesse sonhado e não se lembrasse do sonho. Ouviu em silêncio com o pensamento todo acordado. Lá em baixo era o rio, atrás da casa era a torrente de chuva no barranco, o assobio era o vento, as pedradas na telha eram a chuva, o estrondo no céu era ele se partindo, se quebrando, enlouquecendo, abril tinha sido bem difícil pra ele. Respirou. O ar estava úmido de chuva. Puxou o lençol cobriu os pés, descobriu a cabeça, ficou de olhos fechados no escuro, ele também era um ser escuro. Mas a noite era mais escura do que ele. Esta noite o cortava e ele se afogava penetrado pelo ar molhado da chuva. Pensou, fico acordado assim pensando em dormir. Se disse isto, se eu dormir agora vai amanhecer. Abriu os olhos. Não amanheceria nunca. Puxou o lençol, cobriu a cabeça, descobriu os pés.


 

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