sábado, 24 de julho de 2021

CRÔNICA - A SESTA DA TARDE

 A sesta da tarde


         Entre meio dia e duas horas da tarde ele era infeliz e as coisas ardiam sob o silêncio da casa, sobre tudo que havia pairava um amargor, um travo de desencantamento como se cada greta da parede exalasse a tristeza que estava se purificado na pia em cima dos pratos sujos do almoço, e a tristeza era aquele enorme moscardo caminhando no ar da cozinha, e era também uma teia, porque ele a tinha visto se revelando como a aranha fabricando sua teia com o algodão que vinha lá da sua saliva dela, abriu as mãos num gesto de colher uma fruta e de apanhar um ovo, pensou numa fruta pendurada num galho e que de tão madura essa fruta se inclinava para o chão, mas ele sabia que não tinha fruta, que não tinha ovo nenhum e que o que ele queria pegar era o vazio invisível, então pensou, eu pego essa coisa assim e torço ela para cá e torço ela pra lá e depois ela se transforma numa coisa que se pode sentir entre as mãos, pegável coisa nas mãos, mas o que ele queria sentir assim com as mãos não era uma coisa que se segura e se diz, pronto tenho ela agora e será possível saber como é sua forma e sua cor cinza, o que ele queria ter nas mãos era o ar meio parado que estava preso dentro de casa, e ele estava querendo pegar uma coisa que não se pegava, Concentrou-se mais num esforço de pensamento quieto e moveu os dedos em volta do ar, era assim que ele tinha visto como a aranha pegava as moscas, mas onde a mosca agora, pensou nesta pergunta, mas parou de pensar para poder ouvir, ouviu o calor crescendo e o vento passando nas folhas da goiabeira lá fora, lá adiante no quintal perto do muro, foi aí que ele se lembrou que poderia ir até o quintal, pois enquanto o avô dormisse, quando o avô dormia só o silêncio é que podia ficar conversando dentro de casa e também podia ficar andando lá na sala da varanda e abrindo as portas da casa, ele não podia não, o avô comia o almoço e o avô dormia depois do almoço, aí só quando o avô acordava era que ele tinha como ficar outra vez livre dentro de casa, mas agora o avô dormia o cochilo de meio dia lá na sala e ele precisava estar parado esperando que ele acordasse, então ele olhou o relógio e o relógio olhou pra ele e então André soube que ainda faltava muito tempo pra que as coisas voltassem a acontecer sem precisar ficar pensando em não querer fazer barulho, e se ele não ficasse pensando no relógio então quando se lembrasse o avô já estaria estremunhando lá dentro. Caminhou para o quintal e ainda chegou com tempo de ver o vento ventando nas folhas mais altas da mangueira, sob a mangueira tinha a avó, mas avó não contava, pois a avó não dormia de tarde e ficava assim costurando as meias, mas também ela costurava as calças que se rasgam muito lá nos fundos por causa dos estouros dos traques, a avó só falava pra ele não fazer barulho porque o estava dormindo, então ele ficava como a avó mandava que ele ficasse, ficava calado só pensando nas palavras, mas sem falar nenhuma palavra, desceu os degraus do batente da cozinha e ficou em pé lá no meio do quintal, ficou em pé no meio do sol e o sol queimava sua cabeça, estendeu os braços para frente pra que eles também ficassem quentes de sol, e como ele era um menino escuro seus braços reluziram no sol quente, reluziram como um pedaço de vidro que de repente a gente descobre reluzindo no sol do meio da tarde, mas se ficasse parado ali logo se cansaria de ficar parado ali, por isso caminhou até a sombra da mangueira e sentou-se no chão, olhou os pés secos da avó e pareciam dois pés de galinhas paradas olhando por cima do muro, a avó não tinha galinhas no quintal porque as galinhas eram porcalhonas e ficavam deixando suas cagadinhas pelo quintal e também porque as galinhas não obedeciam nada e estragavam os vasos de losna e as panelas com a arruda e os canteiros da couve, assim as galinhas tinham sido expulsas daquele quintal sem nunca terem vivido lá, mas outros bichos que eram muito pequenos e não se importavam com gente que não gostava deles caminhavam na terra do quintal, e André viu uma formiga grossa e vermelha atravessando um sulco na terra, ele seguiu a formiga e viu quando ela contornou a raiz da mangueira que vinha aparecendo no chão desde dentro da terra, a formiga não teve problemas em continuar andando e caminhou até o outro lado da mangueira onde outras formigas suas amigas esperavam aquela formiga que tinha ido tão longe sozinha, mas que agora voltava para contar como tinha sido sua aventura de formiga pelo mundo que ficava lá depois daquela raiz, e as formigas solidárias foram com a formiga que estava voltando da viagem para dentro do formigueiro porque elas queriam que a formiga que tinha se aventurado contasse lá pra rainha como era o quintal depois da raiz da mangueira, e ele viu quando elas entraram debaixo do tronco da mangueira, deve ser aí dentro o reino das formigas e elas usam a mangueira pra ninguém saber que elas moram dentro de um país que fica entre raízes e escondido debaixo duma mangueira e dentro de um buraco no chão, foi assim que ele pensou e então segurou o tronco da mangueira com as duas mãos disposto a arrancar a árvore inteira pela raiz e gritar lá para as formigas quando elas ficassem assustadas com a sua cara enorme aparecendo preta e feliz na boca do buraco, mas aí ele esqueceu o que era que ele gritaria para as formigas e só pensou que então diria, vim pra uma visita, posso entrar, ele perguntaria, assim depois dele viver lá no reino delas elas se acostumariam com ele e  um dia as formigas pensariam, esse homem chegou, entrou na nossa casa, se deitou na terra e ficou sendo o nosso rei, André passou a mão esquerda espalmada sobre a casca grossa do tronco da mangueira e teve então a sensação de que um dia ele também seria forte e impossível de arrancar pelas raízes como aquela mangueira, encostou-se nela e olhou para cima, pra folhagem escura e que o sol não conseguia entrar ali por causa daquelas folhas todas criando um telhado cerrado, mas mesmo no quintal ele não podia ficar porque também não tinha como ser feliz ficando só dentro daquele quintal com uma mangueira sem mangas e uma goiabeira com goiabas verdes, estão verdes ele pensou, mas ele não queria as goiabas, só pensou isso porque se lembrou da Raposa, ela também não queria daquelas uvas, quando uma fruta está verde a gente come, mas a boca não fica alegre, ele pensou assim, daquelas goiabas que um dia vão ficar maduras ele vai ver os passarinhos comendo elas e também os micos, ah! os micos, os micos é que podiam entrar pelo muro agora e acabar com aquela paz, se os micos, até a avó deixaria a costura e ficaria parada olhando os micos e ele também teria um instante de trégua naquela tranquilidade, aonde os micos, perguntou, mas ele sabia que eles estavam descansando porque fazia tanto calor e ele só via os micos no quintal de manhã e de tarde quando o calor ficava menor e as vezes até se sentia o frio dissolvendo o calor, então ele teria que sobreviver até lá, mas para sobreviver até lá André precisava brincar, mas se já tinha brincado, se já tinha acabado de brincar com tudo que ele conhecia como brincadeira que um menino brinca até três horas da tarde, mas uma cigarra rechinou num ponto do muro, ele prestou atenção, a cigarra estava cantando entre os cacos de vidro em cima do muro, cigarra fica parada cantando e depois voa e não caminha em cima de caco de vidro por isso não se corta, concentrou-se na cigarra, mas ela parou de cantar e ele quis ligar ela outra vez, caminhou para perto do muro, olhou nos buracos do reboco, mas a cigarra também era uma coisa invisível, pois ele nunca tinha visto uma cigarra e não conhecia ninguém que tivesse visto uma cigarra também, o que existe é só a cigarra cantando quando ela para de cantar não existe mais, voltou para dentro de casa e caminhou sem fazer barulho lá pra dentro da sala de janta, sentou-se numa cadeira em volta da mesa e observou as manchas de gordura na tolha, tinham ficado ali depois do almoço e também depois da janta de ontem e também depois de todo aquele tempo que eles comeram sobre a toalha e a avó não tinha lavado a toalha, apoiou as duas mãos sobre a mesa, contou os dedos das duas mãos, na primeira vez que contou ele tinha onze dedos, mas depois contou de novo e tinha só nove dedos, viu que não era assim que contava e recontou  e então ele tinha dez dedos mesmo, pois cada mão tinha só cinco dedos, isso era uma coisa que ele já tinha aprendido e sabia que não podia mudar, ficou mexendo os dedos sobre a toalha da mesa, afastando-os e aproximando-os, lá fora ele ouviu a rua, um carro subia, uma pessoa caminhava na calçada e ouviu o pregão das cocadas, ah! hoje as cocadas tinham vindo, mas ele estava ali sem poder ir lá fora, soprou todo o ar que estava dentro dele e ficou assim concentrado na falta de ar que tinha ficado nele, ouviu o barulho do ventilador elétrico e o silêncio do sono do avô, fechou os olhos e respirou sugando o ar com calma e sem ruído, foi quando abriu os olhos que ele viu o brilho no escuro da sala imóvel, era um brilho que vinha lá de fora, mas que reluzia lá na sala, aproximou-se e pegou, era uma moeda, uma grossa moeda prateada, pôs ela na palma da mão direita e olhou-a sem curiosidade, o avô remexeu-se na rede, saiu dali e seguindo outra vez ao quintal, quando chegou lá no quintal teve uma grande ideia, ele brincaria agora de tesouro enterrado, e desviando-se da vista da avó caminhou até o fundo do quintal e no pé do muro remexeu na terra do canteiro das couves, encontrou as raízes das couves enterradas, encontrou um cachorrinho que ficou perturbado com o sol e entrou logo na terra por outro buraco, encontrou uma pedra redonda e limpou ela no calção e guardou-a no bolso, cavou mais para enterrar a moeda, seria um tesouro que até ele esqueceria onde tinha enterrado, depois ele se surpreenderia se lembrando que tinha uma moeda enterrada lá no pé do muro no meio do canteiro das couves, retirou a terra para os lados cuidadosamente porque depois ele ainda precisaria daquela terra para cobrir o tesouro e se esquecer que tinha enterrado aquele tesouro, a moeda estava sopesa na sua mão,  foi cavando e cavando, então ela emergiu, mas ele primeiro sentiu o macio da pele, limpou a terra em volta e foi aí que ele viu a cabeça do homem que estava enterrada e que aparecia agora fora da terra, era uma cabeça de um homem com os olhos abertos olhando para fora da terra e a boca com uma palavra parada lá nela.


 

domingo, 18 de julho de 2021

CRÔNICA - ESTAÇÃO DAS CHUVAS EM ABRIL

 Estação das chuvas em abril


         

          Quando começou a chover ele ouviu que era madrugada. Acordou dentro do sono e sentiu o rescaldo da escuridão do quarto sobre seu corpo. Parou um pouco de pensar para compreender se já estava acordado, olhou dentro da treva e o escuro do quarto cresceu mais o abatendo sobre a cama. Voltou a pensar, já estou acordado e está chovendo lá fora. Voltou-se para a parede, todas as tábuas da cama rangeram, aquietou-se ouvindo. Não, ninguém dentro de casa. Todo mundo dormindo, mas ele acordado, e a chuva também estava acordada e chovia lá fora. Uma chuva constante e dura que batia no telhado. Teve a primeira sensação do frio, começara a fazer frio lá fora depois que a chuva viera e o vento entrava pelas frinchas da cumeeira. Puxou o lençol, mas os pés ficaram descobertos. E tinha seu braço direito que havia dormido sob seu corpo agora ele voltava a senti-lo. Respirou o ar do quarto e o ar do quarto tinha cheiro de chuva. Então agora seus pensamentos vinham acordados e ele podia-se compreender como uma pessoa deitada na cama, mas acordada trabalhando lembranças, limando ideias. A chuva vinha com o vento e o vento passava atrás da casa e ele sabia que agora a figueira se retorcia no vento e se molhava na chuva. Quando tinha começado a chover então? Ele vira que muito se tinha esperado a chuva, mas a chuva não viera em janeiro. O sol tinha secado a terra e a terra tinha secado as plantas e as plantas vinham secando a paisagem e o sol tinha bebido pedaços completos do rio. Ele vira peixes que morreram sem ar presos na lama do rio, ele vira pedras escuras aparecendo no leito do rio e vira os sapos desertando do rio. Depois o cantarino tinha descido da serra e o estio permaneceu até que começou a soprar o alísio e as formigas tinham começado a cortar folhas e levar pra baixo da terra. Ele tinha visto esse trabalho das formigas durante todo março e precisou catar as formigas da roseira e da murta. Quando a chuva chegou ele viu, e veio primeiro em gotas largas e brutas no fim da tarde, queimou a terra, mas só molhou muito a terra quando já era começo de abril. A quaresma havia se estendido naquele ano. Incomodou-se a posição assumida antes. Assim não dormiria meu deus! Então para pensar mais acordado ele deitou-se em decúbito na cama olhando para cima, mas vendo apenas camadas de trevas avolumando-se no quarto. Foi o carnaval que não foi em fevereiro, se disse. Fechou os olhos pensando em tudo que havia feito naquele tempo. Mas não chegou a completar nenhum pensamento sobre essas lembranças, só começou a pensar numa coisa e essa coisa era o tempo. Mas pensar no tempo não o acalmava porque sentia que o tempo era uma coisa lisa e invisível. O tempo não estava nos relógios, e ele tinha compreendido isto quando o relógio da sala apareceu refletido no espelho sobre o aparador e depois quando ele viu as frutas vincando-se de ferrugem na fruteira e se disse, não é tempo que passa nas frutas, são as frutas que vão passando no tempo, pois o tempo já está completo, não há espaço entre os minutos, não há fissuras nos dias e nos anos, as coisas e nós é que estamos dentro dele, vestidos nele, amparados pela sua mão eterna.

         Não se tranquilizava nada com estas ideias puras e era preciso voltar a dormir agora, pois choverá até de manhã. Abril tinha ficado assim sendo a estação das chuvas. Concentrou-se na chuva para esquecer que podia continuar pensando em outras coisas que não lhe trariam o sono e o esquecimento para voltar a dormir. A chuva lavava o telhado, ouvia a água caindo na biqueira da casa. Atrás da casa a chuva formava um córrego no terreiro e ele ouvia a água descendo na terra, ouvia a água carregando pedras, descendo o barranco. Quanto tempo mais ficaria assim acordado? O que ele ouvia era a chuva e o que ele ouvia era o vento. As aves noturnas estavam nos seus ocos de pau. Lembrou-se da coruja que dormia no buraco do descampado. Se não voou morreu afogada. Subitamente um grande claro entrou no quarto pela telha vã, rápido, mas sólido, pois ainda ele viu os caibros do teto e as telhas limosas. Nitidamente o trovão vinha rolando nas nuvens, cairia bem em cima da casa, cairia em cima do quarto. Quebrou-se todo sobre a casa, partiria o telhado, queimaria as folhas mais altas da figueira. Puxou o lençol para pés e teve a sensação de que a cama não lhe cabia mais. Que horas viera dormir? Que última coisa fizera antes de dormir? Tinha um livro, era um livro com gravuras. Um livro era uma coisa dura na qual ele podia se amparar para voltar a dormir. Mas onde forças pra levantar, andar pelo quarto, acender a luz e tomar o livro? Pensou no livro, mas a chuva recrudesceu. Pensou na chuva. O vento arrastava a chuva que eram gotas de aço nas telhas. De repente o estrondo lá longe, de repente o estrondo em cima da casa. Os elementos em fúria. A água, o fogo, o ar e a terra rebelados. Encolheu-se. Sentiu medo. Esperou com o coração parado no peito e a atenção voltada para a chuva. Ouvia. Ouvia. Ouvia. Mas era preciso parar de ouvir. Tinha sonhado? Assim quis se lembrar do sonho que tinha tido. Mas ele não sabia se tinha sonhado ou pensado num sonho. Era ele sobre uma pedra e tinha Jonas no sonho ou no pensamento. Ele nu, mas não chovia e a água escorria nas pedras e era uma água limpa de riacho. Mas isso não era um sonho era uma memória muito antiga. Quando tinha sido aquele acontecimento? Ele só podia ser menino quando. Hoje nunca mais. Voltou-se para o outro lado de costas para a parede. Não tinha ninguém na casa. Ou ele estava morto? Se fosse um morto pensando estaria enterrado e como estava chovendo lá fora já teria sentido a água molhando seu corpo morto. Ele tinha vergonha de estar assim com medo pensando com o coração aos pulos. Voltou à posição em decúbito, as mãos trançadas sobre o ventre. Onde o dia claro? E lá longe, bem dentro da chuva foi que ele ouviu. Primeiro com uma sensação de desconforto no pensamento depois um grito claro e brusco. E era um quero-quero atormentado no brejo. Respirou. O ar tinha gosto de chuva. Logo as telhas estarão completamente úmidas e se formarão gotas enormes no barro molhado. Cobriu-se todo, mas os pés ficaram descobertos. Pensou que quando amanhece a paisagem toda estaria lavada e o passaredo acordaria lá na figueira. Haveria flores na mata, o mulungu alegre. O rio cheio. À tarde cairiam as tanajuras dando atropelos na cal branca da parede da casa. Mas não se consolou com estes pensamentos. Abriu os olhos sob os lençóis, sentiu-se opresso. Talvez tivesse sonhado e não se lembrasse do sonho. Ouviu em silêncio com o pensamento todo acordado. Lá em baixo era o rio, atrás da casa era a torrente de chuva no barranco, o assobio era o vento, as pedradas na telha eram a chuva, o estrondo no céu era ele se partindo, se quebrando, enlouquecendo, abril tinha sido bem difícil pra ele. Respirou. O ar estava úmido de chuva. Puxou o lençol cobriu os pés, descobriu a cabeça, ficou de olhos fechados no escuro, ele também era um ser escuro. Mas a noite era mais escura do que ele. Esta noite o cortava e ele se afogava penetrado pelo ar molhado da chuva. Pensou, fico acordado assim pensando em dormir. Se disse isto, se eu dormir agora vai amanhecer. Abriu os olhos. Não amanheceria nunca. Puxou o lençol, cobriu a cabeça, descobriu os pés.


 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

CRÔNICA - INFÂNCIA

 Infância

         Como a noite tinha começado lá fora? Para conhecer esse mistério cujo corpo duro caía sobre ele, André curvou-se para o chão. Com as mãos ele não podia sentir essa coisa totalitária que chegava assim mansa, assim fria e se estendia parada sobre o mundo. Ele conhecia outras coisas frias, mas eram sempre seres que não ficavam parados, eram seres que em algum momento se revelavam vivos e cuja pele mesmo assim tão escura era ainda viscosa e as mãos pegavam. E a noite era um relógio sufocando-se e respirando o ar soprado. Com as duas mãos André procurou pegar um pouco da treva. Mas ainda não havia trevas muito espessas, aquela treva grossa e geral que vinha chegando desde o rio até na frente da casa. André pensou no pânico dos peixes ouvindo escurecer sob a transparência da água, quando as galinhas pressentiam a noite, entravam em pânico primeiro e tinham que parar de comer bichinhos na terra e minhocas no quintal, e para os peixes que estavam sempre molhados? A noite não entrava no rio então os peixes não sabiam nada sobre a noite. André praticamente tinha pena dos peixes porque nunca iam parar de brincar e assim as brincadeiras se gastavam mais. Ele abriu as mãos num gesto curto, espalmou-as sobre a noite, curvou-se mais, ainda via seus pés, eram dois pés pretos, negrume humano. André afastou as pernas, as mãos acariciaram o dorso da terra, a terra era crespa e morna e lá dentro da terra moravam os bichinhos que as galinhas comiam no quintal. Ele agachou-se, havia tranquilidade e força na terra. Lá em baixo ele sabia que as pedras estavam crescendo e depois quando não houvesse mais limites para elas lá em baixo elas subiriam pra fora e ficariam morando no chão. André procurou uma pedra morando no terreiro, mas deparou-se com as camadas mais densas da noite. As sombras que tinham começando lá no cerro tinham descido para o rio e tinham chegado na frente da casa. Mas ele só tinha deixado de olhar para o céu um instante de olhar pra o chão e procurar uma pedra ou besouro caminhando no terreiro. Aí quando voltou a piscar apareceu à primeira estrela. Era uma estrela luzindo, começando a boiar e brilhando calma e fria. André passou a mão na terra outra vez. Dalí saía seu sangue, seus ossos, seus cabelos, os ovos das galinhas também saíam da terra por um processo de vir existindo em cada coisa que ia ficando para trás enquanto outras se sucediam nelas para diante. E ele se esforçava pra compreender como primeiro havia a terra e as minhocas, depois a terra abraçava a semente e a semente que morria era depois uma planta, e a planta crescia e vinham as flores e das flores aparecia uma fruta e a fruta ele comia e quando ele comia a fruta vivia nele e ele usava essa vida da fruta para viver depois da fruta comida e caminhar no mundo onde havia peixes, galinhas e sapos. As galinhas comiam as minhocas que nasciam na terra e da vida das minhocas as galinhas faziam um ovo e o ovo era uma nova galinha crescendo presa dentro de uma casa branca. Então ele ria porque quando pensava assim se revelava pra ele um mistério que nem ninguém compreendia – primeiro são as minhocas e as galinhas é quem comem as minhocas e aí as galinhas fabricam o ovo com a pequena vida das minhocas comidas. Os sapos não tinham mistério, ou pelo menos o segredo dos sapos não era como o dos peixes. Ele compreendia os sapos porque uma vez tinha rolado uma pedra e de dentro da pedra saiu um sapo. Então ele se disse, os sapos crescem dentro das pedras e as pedras vêm de debaixo da terra e não pode existir sapos sem as pedras. Mas os peixes podiam viver sem as pedras porque eles são lisos e as pedras também. Os sapos não são lisos. E André parou pra ouvir. E ouvindo e ele soube que não tinha visto uma pedra no terreiro, tinha visto uma forma de pedra, mas a pedra que ele tinha visto era uma pele, e era uma pele que a noite parecia uma pedra, mas não era uma pedra. Era um sapo que ele tinha visto. Por isso tinha pensando num sapo antes. Bem que Nazinha pegava num sapo com a mão. Ele também pegava, mas não podia ficar com ele porque enfim havia a mãe. Então o sapo vinha saindo ou vinha entrando na noite? Um sapo tinha muitas camadas de vidas e isto era bom para o sapo, pois era o único ser que André conhecia que dormia nas pedras, nadava no rio, se banhava na chuva, se escondia no brejo e cavava na terra. Nunca soube como um sapo entra para viver em baixo da terra. Mas ele só soube que sapo dorme enterrado quando cavou lá no molhado do quintal pra achar minhocas pra pescar e encontrou um sapo dormindo de olhos fechados sem querer acordar. De tal modo achou que aquilo era misterioso que cobriu de terra outra vez o sapo e não foi pescar naquele dia. Esse podia ser um mistério dos sapos, mas quando a gente pega um sapo na mão e ver ele quieto e se mijando todo ele fica sem mistério algum. Chegou então pra perto do sapo, eles eram dois seres vagos e úmidos. André falou, você vem no caminho errado o rio é pra lá. Sapo não sabe entender quando gente fala, mas gente entende quando sapo fala, grrrrrrrrrrrrrrruuuuuuuuuuu, grrrrrrrrrrrrrrruuuuuuuuuuu, agora ele entendia, não André, o sapo quem entendia André. Estendeu a mão para tocar o dorso do sapo, na ponta dos dedos já se antecedia a ardência do calor do sapo pulsando em suas mãos. Mas subitamente suspendeu o gesto porque seu coração disparou louco de fúria. Arrebatara-o tão subitamente aquilo que o sapo viera procurar e que André não tinha visto antes porque ainda olhara tudo a sua volta. O que era que mais alvoroçava a noite? Pois lá estava ela, silenciosa, crua, branca, blândula. André assustou-se, não adivinhara a sua presença. Era leitosa e crescia mais, mais, mais. Seu coração sufocava-se de terror, André era um homem pequeno, baixote, estava crescendo, mas não tinha crescido ainda para suportar aquela dor, mas a lua o ameaçava, intumescia suas entranhas, e ele tremia porque tinha medo, e tinha medo porque sempre vira a lua já grande no céu. Quando ele conheceu a lua foi a mãe quem disse, olha lá a lua luar! Era a primeira vez que a lua ardia-lhe no estômago que ela o sufocava no peito. Estava parado e ele que nunca fora assim quieto, ele que sempre se impusera como um menino cuja vida era vivida dentro de uma coisa movendo-se, dentro de outra coisa caminhando, dentro de outro ser correndo, e nadando, e perseguindo o potro, o carneiro e subindo na mangueira. Agora ele era uma pessoa parada olhando, uma pessoa parada num caminho escuro numa noite onde ninguém passava pela estrada. O que ele sentia eriçava os seus pelos, esfriava o seu corpo, brilhava sobre seu cobre pardacento, brilhava também sobre a água e dentro da água e areia lá onde os peixes dormiam. Mas como ele pensando antes ele não sabia dizer se os peixes dormiam, mas a lua entrava na água porque uma vez ele viu a lua caminhando dentro do rio. O luar deixava-o remoto e ele agora era um animal oco. Então ele soube que a lua percutia todos os seres. Que o luar percutia também nas asas dos seres. Nesse momento que a lua começa a ficar branca no céu tem passarinho que dorme pra acordar quando o sol chegar e ave que acorda pra dormir quando a lua se apagar. As galinhas se assustam com a luz próspera da lua, as galinhas eram sempre as primeiras que se atarantavam sem a compreensão das coisas. Elas olhavam de lado e com cada olho que elas tinham no lado esquerdo e direito queriam saber o que era, mas faziam um escândalo. Gente também não compreendia, mas ficava calada esperando que aparecesse outra gente para fazer o escândalo pros outros ouvirem que não se sabia o que era aquilo, mas que não era possível aceitar uma coisa cuja compreensão não se entregava. Então André sentiu que alguma coisa nele se quebrava, cruzou os braços sobre o tronco para protegê-la, o vento passou ventando em torno dele e André viu a raiz mais grossa da figueira avançando sobre a terra e entrando no chão com as suas unhas mais grossas, mas a figueira era forte e não se rendia e lutava com o vento, e o vento trazia o cheiro das flores de murta do quintal e André sentia-se assim tão forte e ilimitado, pois suas mãos e seus pés cresciam, foi sentindo-se rijo, resistente ao vento, resistente como uma raiz dentro da terra. Se tinha quebrado dentro dele uma semente e agora ele sentia uma longa bolha de ar se avolumando e tomando-o. Descruzou os braços e apontou para a lua, ela o revelara, alguma coisa estava dentro dele e ainda podia crescer mais, algo que o faria viver depois, que o fortaleceria para caminhar e compreender não somente o que vinha acontecendo agora, e não somente quando ele brincava no quintal, mas algo que acontecesse quando ele não tivesse mais dentro dum quintal com galinhas, formigas e goiabas maduras. Era algo que aconteceria principalmente fora do ovo. Para não se perder nesta margem fez então uma poesia,

A lua chegou e eu vi a lua

A lua estava sem pressa

Mas eu encontrei uma raiz na terra.

         André ouviu a avó atrás de si. Voltou-se para a porta da casa. Nazinha saía de dentro da casa, então André se lembrou da casa. André se lembrou que tinha jantado, se lembrou que a mãe tinha se sentado na cadeira da cozinha para amamentar e André tinha visto a teta da mãe, a teta da mãe era morena com um bico escuro. André se lembrou da irmã que mãe ia amamentar e aí ele saiu de dentro da casa. Não foi pro quintal que André saiu, ele não queria ir pro quintal porque o pai caminhava lá no quintal. Então André olhou o fogo aceso e como ainda tinha brasas no fogo ele pensou que podia ir lá pra fora, ir pro terreiro, no terreiro tinha a figueira onde ele se ampararia. Mas como não se amparou logo na figueira veio à noite que o fez ficar pensando para além daquela realidade onde a mãe amamentava a irmã e o pai caminhava no quintal. Agora Nazinha quem tinha chegado. Mas a avó não tinha visto ainda o menino coberto pela lua e a avó tinha parado no meio do terreiro olhando a lua. Nazinha pitava cigarro de palha, o menino viu Nazinha olhando pra lua e pitando um cigarro de palha de milho. Então ele caminhou de volta para a calçada pelo canto da parede da casa, sentou-se no parapeito e dali observou a avó. O vento ventava no vestido de ramagens de Nazinha. As flores do vestido se curvavam e agora o vento era mais afoito e mais violento. Nazinha muito cor da terra, magrinha e dura. O vento não venceria Nazinha. As histórias que Nazinha sabia contar. Então o menino pensa que quando a avó acabar o cigarro ela vai se sentar e contar uma história e a história que a avó contar será uma em que ele estará dentro. André sempre entra nas histórias que a avó sabe contar. Ele, o menino que ficou sendo um Cão-de-espeto. Depois foi que se esqueceu daquela história e não teve mais medo dela. A avó disse que era um exemplo, quando ele se lembra desse exemplo fica um menino bom enquanto não o esquece. Vento furioso.

         “Hoje tá uma ventania”. A avó falou.

         “Força da lua”. O pai disse.

         O pai tinha dito força da lua e André não tinha descoberto o pai ainda ali. A lua tinha força então. A lua era fria, mas tinha força. A luz do luar não era como a luz do sol que urticava na pele. A lua iluminava macia e branda. A lua era como braços abrindo-se para abraçar. Súbito um pio e voo rasante. O menino encolheu-se, o cão não olhou nem para a ave nem para a lua. A avó caminhou pra calçada, a irmã chorava lá dentro da casa, a mãe ninava a irmã que já tinha sugado toda a teta da mãe. André pensou no gosto do leite claro e oleoso da teta da mãe. Não devia de ser bom não, mas a irmã gostava e parava de chorar quando mamava na teta da mãe. Nazinha sentou-se no banco de pau. O menino veio, sentou-se ao lado. André sentiu o cheiro do queijo guardado, ele o conhecia como o cheiro da avó. Chegou-se ao corpo dela, pressentiu a tirania de afetos da avozinha, o vento encrespava-se na folhagem da figueira e a coruja voltou a piar. As aves que voam de noite não gostam da lua porque lhes revela o voo, mas tinha bicho que preferia a lua de noite ao escuro de breu. Ele sabia que lá longe no cerro moravam os bichos que ele não perdoava, a mãe-da-lua, o pai-da-mata e o bacurau. Nazinha quem sabia deles. Do curiango Nazinha dizia, vem cantar na entrada do pasto e no estrume do curral. Sapo-boi também canta, mas fica no brejo cantando chamando os peixes pra fora d’água. Sapo-boi não é ave é sapo. A mãe-da-lua nunca chega pra perto da casa, mas o catar dela chegava e o menino tremia dentro dele pensando que eram a mãe-da-lua e o pai-da-mata que mandavam nas coisas de noite. Depois tinha o jaraguá que era um bicho que ele sabia que não podia existir, mas que Nazinha contava que existia.   Deitou-se no regaço da avó, o calor dela o envolveu, chegou-se mais ao ventre para ficar mais tranquilo, dali podia ver a lua, a figueira se retorcendo e o vento que lutava com ela. Podia ouvir também a voz de Nazinha que começava a contar.

         “Diz que era dois irmão que pai e mãe queria matar, nome do menino João, da menina era Maria e o pai mais a mãe resolveram.”


 


 

 

terça-feira, 6 de julho de 2021

CRÔNICA - A ILHA BARATÁRIA

 

A Ilha Baratária

  Era um dia de vento, pois fazia dois dias que tinha chovido muito e desde então chovera sempre, o sol entrando e saindo entre nuvens, o ar crepitante e o canavial feliz. André parou numa margem do rio, iscou o anzol e pôs na água. Não fora pelos peixes que viera? Tinha a expectativa dos lambaris que eram sempre prováveis depois da enchente do rio.

    Esperou que os peixes mordessem ali, mas como achava que aquele não era o lugar próprio do rio para pescar, apenas experimentou ver se eles estavam já estavam mordendo, pois a água do rio ainda estava muito veloz e barrenta. Ajeitou o embornal no ombro, pensou um pouco na crosta grossa que ele tinha nas costas da mão, ferida de corte de faca. Mas ele tinha paciência de esperar os peixes morderem antes de desistir e procurar um poço mais baixo do rio.

         Em volta em podia perceber a força da enchente do rio. A água lavara até na entrada do canavial e o capim penteado na margem ainda não se encrespara completo. Lá na outra margem do rio que desbarrancara uma árvore inteira caíra na corrente, embaixo das raízes crescerão lambaris – ele pensou.

         Como nenhum peixe mordeu naquele ponto do rio, André continuou subindo pela margem esquerda, e como tinha chovido ele caminhava prestando atenção no caminho, pois sempre depois da chuva a terra molhada acordava esses seres ocos com dois olhos e cem pernas. Eram os principais bichos que ele não perdoava e também as tarântulas.

         Pudesse seria o exterminador daqueles descasos de Deus com a vida. As cobras, os sapos, as lagartixas, os bichos-paus ele perdoava todos, compreendia que não eram bichos incertos e guardavam uma necessidade urgente lá neles. Até aos escorpiões ele perdoava. Perdoava mesmo, bichos que não enganam e tem sua vida completa.

         Prestava atenção também ao vento. E o vento vinha passando e entrando no canavial. A cana reunida resiste ao vento, resiste a enchente do rio, raiz de cana pisa na terra escura e luminosa do brejo, só os dedos da cana aparecem fora da lama. O vento era violento, pingos de chuva caíam, mas a manhã clara também resistia.

         André virou um torrão grosso e compacto com a ponta da botina. Nem aranha vermelha, nem escorpião com ferrão levantado, nem rã dormindo, só uma paquinha vesga com medo do sol. Sem sol profundo, pois as nuvens escondiam a luz intensa do astro. Mas não deixou que o cachorrinho-d’água voltasse para as sombras. Depois se chovesse de verdade ali não seria devidamente seguro, quebrou o torrão com a planta da botina e chutou os restos da terra para dentro do rio e assim foi seguindo pela margem, potente e humano.

         Só parou para contemplar aquilo. De repente ela tinha aparecido no meio do rio, tinha aparecido quando ele já tinha quase desistido dos lambaris. André sentiu o coração sôfrego e intranquilo, então compreendeu subitamente que a enchente do rio trouxera a ilha.

         Não era uma coisa extraordinária que o faria feliz sempre, mas era a primeira coisa que ele tinha encontrado e que seria misteriosamente. Olhava pasmo para o que tinha aparecido no meio do rio. A água da chuva trouxera a ilha. Viera à ilha arrastada com os peixes, as folhas, os galhos mortos, os seixos rolados. A ilha viera na enchente do rio.

         De onde ele estava não se podia dizer que fosse uma ilha verdadeira com todas as propriedades de ilha. Mas ele podia concebê-la como uma ilha principalmente porque era uma terra rodeada de água por todos.

         Agora ele tinha que ocupar a ilha, ser o primeiro homem a pisar na ilha, ser o primeiro homem a habitá-la e a chamá-la de ilha. Então André pensou que ele seria o descobridor da ilha. Entraria no rio e chegaria até lá na ilha como o primeiro homem que pisou lá nela. Lá da ilha ele poderia pescar lambaris bem no meio do rio e teria os peixes mais grossos do rio. Mas então como chegar na ilha?

         Com uma jangada atravessaria o canal e seria o primeiro descobridor da ilha. Com uma jangada sim, mas não tinha tempo para uma jangada agora, e a ilha estava tão perto, tão ao alcance de um nado que André descalçou as botinas e despiu-se com pressa para chegar lá na ilha nadando.

         Nadou e chegou na ilha e sentiu que pela primeira vez pisava numa terra bruta, numa terra que era propriamente sua, pois até ali ninguém ainda chegara, naquele lugar ninguém tinha proposto uma rua, uma cidade, um poste elétrico. Era um lugar não habitado de bichos e de homem, era o lugar onde se deveria vir para ficar sozinho pensando como era bom estar sozinho em alguma parte do mundo.

         Uma terra para um homem só, mas ele também tinha que pensar em Marina. Principalmente André tinha que trazer Marina para a ilha. Mas em que dia diria à Marina – Vem comigo, o rio trouxe uma ilha na enchente e eu a descobri e tem lugar pra nós dois lá nesta ilha.

         Marina não viria para a ilha como ele veio, não viria assim como um fugitivo da terra. Diria pra ela – Vamos tomar banho no rio e de repente quando ela chegasse ali mostraria a sua ilha e falaria pra ela que aquela ilha seria dela se ela quisesse.

         Determinou-se fazer da ilha um lugar onde ele habitaria mesmo quando as férias acabassem. Mas ele compreendia que ainda não era tempo de fazer da ilha um lugar humano. Assim não escolheu logo um nome para ela, deixaria para pensar num nome quando voltasse no dia seguinte e nos outros dias.

         Poderia dizer pra Marina – esta ilha não tem nome, você pode chamar com o nome que você achar mais bonito, eu deixo que você escolha um nome pra ela. E ele seria então o governado da ilha, Marina falaria um nome e chamaria ele de o governador da ilha.

         Logo André deparou-se nu e habitando uma ilha. Viu lá na margem do rio que ele tinha deixado o embornal, o anzol e o canivetinho. Também não era ainda possível trazer coisas para a ilha. Quando ele voltasse nos dias seguintes habitaria a ilha com outros seres. Agora ele queria preparar-se para ser livre e feliz.

         Assim pensando André deitou-se na ilha. Agora ele era um corpo nu e esguio deitado na terra. Agora ele uma raiz escura das árvores entrando na terra. Ouviu o silêncio da água, da água escorrendo no rio a sua volta. Era bom e tranquilo ser humano ali na sua ilha. Fechou os olhos só para abri-los logo, que bom está vivendo ali como um ser, como um passarinho voando sempre.

         Quando o avô era vivo... Por onde caminha agora o avô? E o avô sempre sabia que ele ainda não tinha comido o almoço, que ele era um menino que ficava sozinho porque os outros meninos impediam a sua felicidade. Mas agora ele estava vivendo com a avó e aquele tio num desencanto lá só dele. Então era por isso que André precisava do seu rebanho de nuvens e de formigas no quintal. Era por isso que ele via as nuvens se compor-se em cavalos, em bois e em perfis humanos.

         O sol irradiava-o, menino tuíra deitado no chão da ilha. E então agora André não era mais somente aquelas raízes negras da terra, ele era também uma pedra boiando no meio do rio, um peixe que tinha saltado para fora da água, um pássaro que tinha batido numa parede branca.

         Desde dentro de si André sentiu que sua pele realmente não se conformava mais a um corpo que não se rendia mais aos seus próprios limites. Quando tudo aquilo começou a acontecer ele não sabia se lembrar, mas vinha acontecendo com mais frequência todos os dias. Abriu as pernas para sentir com mais força o que ele sabia que estava no auge do fogaréu. A partir daquele fissura começava a crescer e a se nutrir dele outro ser mais faminto e crespo. Sorriu-se porque se se concentrasse muito naquele ponto do seu corpo outro ser se elevaria do chão.

         O sol agora tinha aparecido completo no céu e queimava-o. André ergueu-se, tomou um punhado de terra e seixos e tranquilizou-se com isto, tranquilizou-se com a terra úmida ardendo entre seus dedos. Pensou em fazer um abrigo para si, moitas de assa-peixe cresciam na margem. Voltaria com elas no dia seguinte. Traria o anzol para pescar lambaris e fogo, sim, como traria fogo para a ilha principiaria uma humanização da ilha, porque também teria que trazer sal para lá.

         Marina viria com ele para a ilha. Chegariam numa jangadinha na ilha e Marina o faria o rei da ilha. E assim aquelas férias estariam bem completas.

         Ele traria ingás para a ilha, Marina pescaria lambaris, ele ficaria deitado na areia da prainha e ouviria a água do rio correndo, ouviria o os cabelos de Marina ao vento, limparia com seu canivetinho os peixes que Marina tinha pescado, sim traria o canivetinho e o sal para comerem lá na ilha os peixes que Marina pescasse.

         Construiria também um forte para defender a ilha, as pedras viriam lá da terra. Mas André viu uma pedra no fundo do rio. Entrou no rio, pegou a pedra e trouxe para a ilha, aquela seria a primeira pedra do forte. Sentou-se nesta pedra, olhou a sua propriedade, e era a primeira vez que ele se sentia um homem, que ele se sentia humano, pois tinha uma coisa presa, um objeto moldável, intransferível entre as mãos.