A sesta da tarde
Entre meio dia e duas horas da tarde ele era infeliz e as coisas ardiam sob o silêncio da casa, sobre tudo que havia pairava um amargor, um travo de desencantamento como se cada greta da parede exalasse a tristeza que estava se purificado na pia em cima dos pratos sujos do almoço, e a tristeza era aquele enorme moscardo caminhando no ar da cozinha, e era também uma teia, porque ele a tinha visto se revelando como a aranha fabricando sua teia com o algodão que vinha lá da sua saliva dela, abriu as mãos num gesto de colher uma fruta e de apanhar um ovo, pensou numa fruta pendurada num galho e que de tão madura essa fruta se inclinava para o chão, mas ele sabia que não tinha fruta, que não tinha ovo nenhum e que o que ele queria pegar era o vazio invisível, então pensou, eu pego essa coisa assim e torço ela para cá e torço ela pra lá e depois ela se transforma numa coisa que se pode sentir entre as mãos, pegável coisa nas mãos, mas o que ele queria sentir assim com as mãos não era uma coisa que se segura e se diz, pronto tenho ela agora e será possível saber como é sua forma e sua cor cinza, o que ele queria ter nas mãos era o ar meio parado que estava preso dentro de casa, e ele estava querendo pegar uma coisa que não se pegava, Concentrou-se mais num esforço de pensamento quieto e moveu os dedos em volta do ar, era assim que ele tinha visto como a aranha pegava as moscas, mas onde a mosca agora, pensou nesta pergunta, mas parou de pensar para poder ouvir, ouviu o calor crescendo e o vento passando nas folhas da goiabeira lá fora, lá adiante no quintal perto do muro, foi aí que ele se lembrou que poderia ir até o quintal, pois enquanto o avô dormisse, quando o avô dormia só o silêncio é que podia ficar conversando dentro de casa e também podia ficar andando lá na sala da varanda e abrindo as portas da casa, ele não podia não, o avô comia o almoço e o avô dormia depois do almoço, aí só quando o avô acordava era que ele tinha como ficar outra vez livre dentro de casa, mas agora o avô dormia o cochilo de meio dia lá na sala e ele precisava estar parado esperando que ele acordasse, então ele olhou o relógio e o relógio olhou pra ele e então André soube que ainda faltava muito tempo pra que as coisas voltassem a acontecer sem precisar ficar pensando em não querer fazer barulho, e se ele não ficasse pensando no relógio então quando se lembrasse o avô já estaria estremunhando lá dentro. Caminhou para o quintal e ainda chegou com tempo de ver o vento ventando nas folhas mais altas da mangueira, sob a mangueira tinha a avó, mas avó não contava, pois a avó não dormia de tarde e ficava assim costurando as meias, mas também ela costurava as calças que se rasgam muito lá nos fundos por causa dos estouros dos traques, a avó só falava pra ele não fazer barulho porque o vô estava dormindo, então ele ficava como a avó mandava que ele ficasse, ficava calado só pensando nas palavras, mas sem falar nenhuma palavra, desceu os degraus do batente da cozinha e ficou em pé lá no meio do quintal, ficou em pé no meio do sol e o sol queimava sua cabeça, estendeu os braços para frente pra que eles também ficassem quentes de sol, e como ele era um menino escuro seus braços reluziram no sol quente, reluziram como um pedaço de vidro que de repente a gente descobre reluzindo no sol do meio da tarde, mas se ficasse parado ali logo se cansaria de ficar parado ali, por isso caminhou até a sombra da mangueira e sentou-se no chão, olhou os pés secos da avó e pareciam dois pés de galinhas paradas olhando por cima do muro, a avó não tinha galinhas no quintal porque as galinhas eram porcalhonas e ficavam deixando suas cagadinhas pelo quintal e também porque as galinhas não obedeciam nada e estragavam os vasos de losna e as panelas com a arruda e os canteiros da couve, assim as galinhas tinham sido expulsas daquele quintal sem nunca terem vivido lá, mas outros bichos que eram muito pequenos e não se importavam com gente que não gostava deles caminhavam na terra do quintal, e André viu uma formiga grossa e vermelha atravessando um sulco na terra, ele seguiu a formiga e viu quando ela contornou a raiz da mangueira que vinha aparecendo no chão desde dentro da terra, a formiga não teve problemas em continuar andando e caminhou até o outro lado da mangueira onde outras formigas suas amigas esperavam aquela formiga que tinha ido tão longe sozinha, mas que agora voltava para contar como tinha sido sua aventura de formiga pelo mundo que ficava lá depois daquela raiz, e as formigas solidárias foram com a formiga que estava voltando da viagem para dentro do formigueiro porque elas queriam que a formiga que tinha se aventurado contasse lá pra rainha como era o quintal depois da raiz da mangueira, e ele viu quando elas entraram debaixo do tronco da mangueira, deve ser aí dentro o reino das formigas e elas usam a mangueira pra ninguém saber que elas moram dentro de um país que fica entre raízes e escondido debaixo duma mangueira e dentro de um buraco no chão, foi assim que ele pensou e então segurou o tronco da mangueira com as duas mãos disposto a arrancar a árvore inteira pela raiz e gritar lá para as formigas quando elas ficassem assustadas com a sua cara enorme aparecendo preta e feliz na boca do buraco, mas aí ele esqueceu o que era que ele gritaria para as formigas e só pensou que então diria, vim pra uma visita, posso entrar, ele perguntaria, assim depois dele viver lá no reino delas elas se acostumariam com ele e um dia as formigas pensariam, esse homem chegou, entrou na nossa casa, se deitou na terra e ficou sendo o nosso rei, André passou a mão esquerda espalmada sobre a casca grossa do tronco da mangueira e teve então a sensação de que um dia ele também seria forte e impossível de arrancar pelas raízes como aquela mangueira, encostou-se nela e olhou para cima, pra folhagem escura e que o sol não conseguia entrar ali por causa daquelas folhas todas criando um telhado cerrado, mas mesmo no quintal ele não podia ficar porque também não tinha como ser feliz ficando só dentro daquele quintal com uma mangueira sem mangas e uma goiabeira com goiabas verdes, estão verdes ele pensou, mas ele não queria as goiabas, só pensou isso porque se lembrou da Raposa, ela também não queria daquelas uvas, quando uma fruta está verde a gente come, mas a boca não fica alegre, ele pensou assim, daquelas goiabas que um dia vão ficar maduras ele vai ver os passarinhos comendo elas e também os micos, ah! os micos, os micos é que podiam entrar pelo muro agora e acabar com aquela paz, se os micos, até a avó deixaria a costura e ficaria parada olhando os micos e ele também teria um instante de trégua naquela tranquilidade, aonde os micos, perguntou, mas ele sabia que eles estavam descansando porque fazia tanto calor e ele só via os micos no quintal de manhã e de tarde quando o calor ficava menor e as vezes até se sentia o frio dissolvendo o calor, então ele teria que sobreviver até lá, mas para sobreviver até lá André precisava brincar, mas se já tinha brincado, se já tinha acabado de brincar com tudo que ele conhecia como brincadeira que um menino brinca até três horas da tarde, mas uma cigarra rechinou num ponto do muro, ele prestou atenção, a cigarra estava cantando entre os cacos de vidro em cima do muro, cigarra fica parada cantando e depois voa e não caminha em cima de caco de vidro por isso não se corta, concentrou-se na cigarra, mas ela parou de cantar e ele quis ligar ela outra vez, caminhou para perto do muro, olhou nos buracos do reboco, mas a cigarra também era uma coisa invisível, pois ele nunca tinha visto uma cigarra e não conhecia ninguém que tivesse visto uma cigarra também, o que existe é só a cigarra cantando quando ela para de cantar não existe mais, voltou para dentro de casa e caminhou sem fazer barulho lá pra dentro da sala de janta, sentou-se numa cadeira em volta da mesa e observou as manchas de gordura na tolha, tinham ficado ali depois do almoço e também depois da janta de ontem e também depois de todo aquele tempo que eles comeram sobre a toalha e a avó não tinha lavado a toalha, apoiou as duas mãos sobre a mesa, contou os dedos das duas mãos, na primeira vez que contou ele tinha onze dedos, mas depois contou de novo e tinha só nove dedos, viu que não era assim que contava e recontou e então ele tinha dez dedos mesmo, pois cada mão tinha só cinco dedos, isso era uma coisa que ele já tinha aprendido e sabia que não podia mudar, ficou mexendo os dedos sobre a toalha da mesa, afastando-os e aproximando-os, lá fora ele ouviu a rua, um carro subia, uma pessoa caminhava na calçada e ouviu o pregão das cocadas, ah! hoje as cocadas tinham vindo, mas ele estava ali sem poder ir lá fora, soprou todo o ar que estava dentro dele e ficou assim concentrado na falta de ar que tinha ficado nele, ouviu o barulho do ventilador elétrico e o silêncio do sono do avô, fechou os olhos e respirou sugando o ar com calma e sem ruído, foi quando abriu os olhos que ele viu o brilho no escuro da sala imóvel, era um brilho que vinha lá de fora, mas que reluzia lá na sala, aproximou-se e pegou, era uma moeda, uma grossa moeda prateada, pôs ela na palma da mão direita e olhou-a sem curiosidade, o avô remexeu-se na rede, saiu dali e seguindo outra vez ao quintal, quando chegou lá no quintal teve uma grande ideia, ele brincaria agora de tesouro enterrado, e desviando-se da vista da avó caminhou até o fundo do quintal e no pé do muro remexeu na terra do canteiro das couves, encontrou as raízes das couves enterradas, encontrou um cachorrinho que ficou perturbado com o sol e entrou logo na terra por outro buraco, encontrou uma pedra redonda e limpou ela no calção e guardou-a no bolso, cavou mais para enterrar a moeda, seria um tesouro que até ele esqueceria onde tinha enterrado, depois ele se surpreenderia se lembrando que tinha uma moeda enterrada lá no pé do muro no meio do canteiro das couves, retirou a terra para os lados cuidadosamente porque depois ele ainda precisaria daquela terra para cobrir o tesouro e se esquecer que tinha enterrado aquele tesouro, a moeda estava sopesa na sua mão, foi cavando e cavando, então ela emergiu, mas ele primeiro sentiu o macio da pele, limpou a terra em volta e foi aí que ele viu a cabeça do homem que estava enterrada e que aparecia agora fora da terra, era uma cabeça de um homem com os olhos abertos olhando para fora da terra e a boca com uma palavra parada lá nela.