CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE NO PURGATÓRIO
I
A tarde fecha-se nas faces tisnadas dos operários,
Dos comerciários, dos estudantes, dos vendedores,
Empregadinhas que trabalham a dias,
Professores, motoristas, o menino engraxate.
Meu Deus! estão cansados, estão, sobretudo cansados,
E anseiam a lua, mas a lua é quarto minguante,
E anseiam a noite, mas a noite será sem cinema,
A noite será sem albumina, sem o amor que consola.
A noite virá como uma lápide e pesará sobre os corpos.
E os homens que voltam para casa não são os homens que se irmanam,
Não são os homens que canalizam os rios, que drenam os pântanos,
Os homens que erguem arranha-céus, que fundam liturgias,
Nem os homens que voaram para a lua, que colonizaram a lua,
Esses que voltam para casa não construíram as pirâmides milenárias,
Não impuseram ao Cristo sua cruz.
Estes são os homens cuja foice totalitária cevou todo sonho,
Estes são os homens cuja águia hiperbórea esbulha sempre,
Estes são os homens que segam nuvens, que segam o vento.
II
Na lama, na imundície humílima,
Cresce, vem do imo da terra,
Flor sem raiz, lírio timorato.
Rasga, fende o asfalto, revela-se,
Cresce em sigilo entre as gretas do chão
E o recanto guardado da calçada,
Mãos não o colhe, todas as mãos estão vazias,
Nunca será feixe de lírios,
Será apenas uma flor, vaga,
Crescerá, viverá até um dia,
Depois morrerá e secarão as pétalas,
Será pó, desaparecerá. Depois
Dirá um – naquele meio-fio da rodovia nasceu uma flor
Depois essa flor cresceu e morreu
Mas no subsolo uterino ainda se conservam seus bulbos.
III
Os homens cansados, a flor timorata, o livro já muito antigo,
Revelam os pensamentos de um morto,
De alguém que veio de Minas, que faiscou ouro nas lavras
Da Rua Joaquim Nabuco, 81,
Que só achando pirita se disse -
“Joeirarei o ferro em Ipanema”.
IV
O morto és tu Carlos.
Tira os óculos,
Sopesa os grânulos,
Pensa o poema,
Pseudomorfose,
Silencia a palavra
Fecha-a nos dicionários.
Começa a chover lá fora,
A água desce nas ruas,
Lima as pedras, lima a dor,
Vêm de longe um grito,
Munch? Maiakovski?
O homem que cai?
Ataque de tigre?
Tigre. Tigre. Tigre.
Setembro na capital da república.
Quando será amanhã?
Virá uma sombra e será noite,
Tudo isto acontecerá quando acabar à tarde,
Quando os homens descobrirem o relógio parado,
Quando se fizer silêncio
E lá na madrugada espessa e sem lume
Começar a se ouvir ainda não audível
Um canto.
Teu espírito sem volume e sem forma,
Uma névoa, uma inscrição ígnea no beco.