Metade pássaro
Então no instante em que propôs a resposta não houve quem o seguisse, pois extinguira-se o tempo. Olhou o quadro-negro aonde estabelecera determinantes, olhou indeciso para a sala, os alunos se agitavam saindo apressados do recinto. Voltou-se para o quadro, esperaria que estivesse sozinho, num instante poria tudo resolvido e também seguiria. Mas não pode nem mais pensar nisto porque logo estava sozinho e pensou que precisava caminhar até a casa e sem dúvida estava cansado e podia sempre dormir um pouco mais daquela noite. Apagou tudo sobre si e guardou suas coisas muito atabalhoadamente ferindo os dedos nas lâminas do papel, e eram coisas que ele precisava transportar como insígnias de sua vida.
Não se sentiu culpado enquanto atravessava o pátio da escola e ouvia os últimos indícios de gente que se apressava para terminar aquele dia. Também ele era um homem que queria por fim aquele dia, um dia que lhe bastara muito, mas como os outros antecedentes havia sido cansativo e não o livrara de nenhuma de suas intranquilidades. Pensou então que sempre havia o seio da sua família onde se abrigaria, mas que também era o abrigo dos filhos e da mulher e que no final ele mesmo é quem era o abrigo de todos. Terminou de atravessar o pátio e foi quando chegou ao final do corredor que sentiu pela primeira vez o bafio quente e roçagante do vento liso e esbatido que lhe atingiu o rosto. Respirou pela primeira vez e aceitou com calma a noite que se oferecia integral e imponderável. Não parou na entrada para pensar que saia do trabalho, então desceu os degraus e quando atravessou o portão estava na calçada olhando a rua. E era uma rua onde havia um cão, um cavalo e um gato. Seguiu ao longo do muro contornando o prédio para chegar à outra rua que o poria caminho de casa. Caminhava sem pensar que caminho seguiria, pois sempre seguira o mesmo caminho que em breve o poria na porta de sua casa, dentro da sala da casa que ele reconheceria pelo ar insulado que respiraria com a naturalidade do homem que encontra conforto e descanso. A sua frente seguiam outros e eram os mesmos que com ele conviveram no exíguo lugar da sala de aula até que os libertara a providencial hora de seguirem vidas opostas sob o mesmo céu comum. Retardou o passo para não precisar ultrapassá-los e obrigar-se a cumprimentá-los e esperar comovido que lhe respondessem boa noite professor. Quando os viu seguir pela outra rua desceu pela travessa e seguiu o caminho do rio. Parou na calçada numa ansiada espera, cada veículo que vinha o impacientava com o desconexo do movimento e da pressa dos que voltavam pra casa. Quando pode enfim seguir atravessou todo o quarteirão até caminhar pela calçada da canalização do rio.
A luz era espessa naquele percurso e ele hauria essa tepidez da iluminação pública com certo prazer autoimposto. Segurou com força nas alças do embornal onde trazia roca, fuso e lã, durante a noite desfaria a trama. Aliviou o desconforto do peso por instantes e foi caminhando sonolento e cansado, seguindo a vontade das pernas que ansiavam como ele pelo amparo de uma cadeira vazia. Olhou perplexo para a cidade e começou a observar a paisagem da encosta onde se erguia o bairro alto e lá adiante o morro onde em alguma rua em aclive ficava sua casa. Odiou-se por se ocupar de tantas coisas reduzíveis a nada enquanto largava sem nenhuma atenção as grandes premências de sua vida. O mais importante mesmo o que não podia deixar de afetar tudo o que ele era e o que esperavam dele, ele nunca prestava atenção fixa e necessária.
E de repente como se os seus sentidos tivessem acordado do torpor e do cansaço começou a pensar e a ouvir distintamente tudo a sua volta. Primeiro descobriu onde estivera desde os primeiros instantes da manhã em que se pôs de pé e após beber a necessária xícara de café e sua alma matemática esteve sempre atribulada recompondo pedras. A tarde é que tinha sido mais complicada, pois sentira-se mórbido e velado pelo bochorno. Vivera essa tarde como nos outros dias, mas preferira sempre poder fechar os olhos e acordar quando o chamassem para uma felicidade táctil mesmo que líquida. Ouviu também a água das galerias dos esgotos que vinham para o rio. O rio que não era mais um rio propriamente e suas águas fermentavam nas excreções das fezes da cidade. Eram águas podres e estagnadas entre o matagal e o capim que assumiram seu leito. E o homem sentiu o odor viril de enxofre que se exalava do rio. Não era mesmo um rio, mas tinha sido um dia um rio e ele pensou imediatamente como tinha sido aquele rio no tempo que suas águas corriam entre pedras, peixes e areia lavada. Um rio é caminho que seguindo-o pode-se ir ao meio do mar e estando tão longe do mundo aprende-se a voar como um pássaro, como uma estrela no céu.
Foi quando de súbito estacou porque se tinha interposto diante dele enorme e peluda ratazana. Voltou-se para a direita onde havia como seguir por outro caminho. Mas como não se decidia atravessar a rua para continuar sua marcha, prevaleceu à necessidade de ficar parado e se irmanar com aquela natureza volúvel e mínima que se impusera sobre ele. Olhou o animal e ele era cinza e inóspito. Cessou sua respiração e ele ouviu seu cansaço ardendo nas suas entranhas. Pensou que se Deus estivesse ali e fosse a ratazana leprosa do esgoto o poria salvo daquela pedra. Mas não havia Deus e ele estava sozinho e o rato estava com ele e os dois eram dois seres parados com a noite por dentro de si. Se se voltasse para trás caminharia por onde tinha vindo e não era mesmo impossível que houvesse outro caminho que ele seguiria com prazer até uma porta onde coubesse a chave que trazia no bolso da calça. Voltar seria libertar-se, mas por que nenhuma opção encontrava sua acolhida e o que fazia era apenas estar parado olhando-se fixamente no rato que se paralisara estorvando seu caminho? Mas então se lembrou que era o mais forte e tinha quase dois metros de altura e que a natureza provera-o de força e que as ervas do campo, as árvores e suas sementes, os animais da terra e as aves do céu lhe haviam sido dadas e que o uso delas era propriedade sua. Pensou então só em desviar-se um pouco a direita para poder passar, mas quando avançou, o coração estancado o bicho entrou na boca-de-lobo e o homem sentiu revelar-se ígneo e superficial onde ardiam os últimos indícios de um incêndio que consumira o universo.
Caminhou para frente esquecendo-se do fato como
coisa já muito antiga, mas em breve sentiu a pedra na planta dos pés. Não soube
explicar como o sedimento havia entrado nos sapatos, mas era enorme pedregulho
que o limitava. Parou, olhou em volta. Na rua oposta, do outro lado do canal
havia uma janela aberta, mas ninguém a espreita. Olhou mais perto de si. Casas
fechadas e habitadas por dentro como frutos de polpa rala. Concentrou-se nos
próprios pés. Decifra-me e caminharei. Mas a pedra pesava-lhe. Quantos passos
caminhara desde que vira o animal que era um rato? Olhou para trás e contou.
Nem cinco passos e agora estava vencido. Sua água era um vasto charco onde ele
era escolhos e boiava e tinha as mãos abertas para cima. Onde colhera aqueles
frutos? Só saberia a vertente daquele voo se chegasse ao seu princípio. Foi
seguindo, caminhando, caminhando. Mas agora não tinha nenhum mapa prévio,
apenas a condição de não ser um homem parado numa calçada no meio da noite se
impunha como sua natureza. Ele era um homem e um homem era um rio que passava
sempre. Se não tinha mesmo piedade de si, quem se compadeceria dele se nem ele
estava realmente certo de que tinha se visto imerso no espelho do quarto? Não
seria nenhuma surpresa se um dia pudesse contemplar-se numa fotografia e
dissesse eu era assim antigamente, mas depois escolhi e nunca aprendi a ser um
homem que cresceu. Só os pensamentos que lhe vinham agora eram próprios para
permiti-lo alcançar alguma lucidez ou alguma lembrança de que fora posto no
mundo, mas como teria meios de compreender a revelação de si como essa coisa aí
e cuja constância de todo dia permitia apreender sua nulidade no mundo? Ele era
um retalho, não era uma semente. Mas se fosse semente havia caído entre os
espinhos mais agudos e vorazes e agora crescia entre vértebras e fissura nas
pedras. Uma ponte. Outra ponte. Poderia atravessá-las, seguir por outro
caminho, mas assim mesmo estaria ainda em casa e veria que os filhos já tinham
dormido e Rebeca o esperava com a cabeça mal voltada para a porta onde ele
assomava. Mais outra ponte e ele não a cruzou. Quando viu outra e não a escolheu
seguir foi que compreendeu que já não tinha mais como voltar e que toda a sua
vida estava entregue aquela obstinação de continuar andando sem caminho. Um
homem subsumido na terra, sem olhos, mas na estrada. Agora a rua era escura
porque já atravessara a parte mais limpa da cidade e chegara até o mercado e
ele sabia que ali desaguavam todas as impurezas dos bairros do centro. O rio
era uma caudalosa cloaca sem peixes, sem pedras e sem areia. Seguiria,
seguiria, seguiria sempre. Agora que o cansaço era somente uma lembrança insone
que paralisava-o não poderia parar antes do fim de tudo. Desviou-se de um gato,
desviou-se de uma raiz, e era agora a última ponte que vinha, caminhou mais,
era mesmo a necessidade de evadir-se, de fugir, de perder-se num encantamento
que o arrebatasse completo e consentido para um universo branco onde estivesse
sempre girando na voragem espiralada que a sua cabeça não propunha nem como
pensamento nem como ideia. E assim acabaria com a impostura dessas sementes que
vinha espalhando no seu campo e que cresciam acima da erva e se erguiam como palmas
num céu onde não cabia seu voo. Caminhara tanto, perscrutara tantos mistérios e
no final o que revelava-se para ele eram as sombras que a própria luz fizera
para impedir que vissem seus próprios passos quem ousara olhar diretamente por
onde seguir. Se tinha que errar como uma ave sem voo achava que era melhor que
o sol o fizesse lançar-se contra a parede de cal branca e acabar-se como
acabam-se os pombos no desespero do voo nas vidraças e nas paredes caiadas. Não
era cego, mas acreditava no silêncio para ver através da superfície das coisas.
Foi então que pisou as raízes e as ramas e não pode mais seguir porque a rua tinha acabado ali e havia agora espesso matagal para onde o rio continuava indo. Mesmo assim fez esforço para ainda seguir, mas não pode muito. Parou, veio-lhe então o sufocamento e ar era brumoso e vil, não respirou logo, porque sentiu que de repente estava sozinho e assim não tinha medo, nem encontrava no bojo de sua alma nenhuma aparência de que como um homem como ele não era livre. Olhou primeiro para o mais próximo que pudesse de si mesmo, era seu corpo escuro, suas mãos em garras, seus pés escalavrados, as pedras do calçamento que acabava ali, paredes das casas que a última enchente do rio sem margens levara e mais adiante o odor acre e pútrido deste rio e lá longe, no âmago da noite, a lua audível sobre o palmeiral ancho e ele parado dentro do labirinto em trevas.
Meia-noite.
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