domingo, 29 de novembro de 2020

CRÔNICA - PAI PRÓDIGO

 Pai pródigo

    Bem cedo ela acordou, mas ficou imóvel sobre a cama como um grande lagarto quieto e parado sob o sol. Lá fora a manhã chegava com suas luminescências incandescentes. Mas ela que não era como uma pedra sólida e lisa compreendeu logo que tinha esse direito de restabelecer-se na sua condição estrita de mãe e guarda da casa antes de pôr-se de pé e ser uma pessoa que se punha perante o fogão, que fervia panelas, que afanada preparava o alimento dos filhos. Mas, sobretudo era no almoço de Miguel em que ela pensava. Não pensava nisso como uma obrigação desprestigiosa, afinal como uma mãe natural, dessas que voam para longe e traz o alimento do filho, ela era assim também. Regurgitava e alimentava os dois. Fazia isso mais claramente com Miguel, pois quando pode voltar a si depois do entrechoque de sentimentos que lhe sobreveio quando soube que era verdade, encontrou primeiro Miguel estendendo-lhe as mãos para pô-la outra vez amparada e segura no caminho. Com surpresa soube ali que um filho não é sempre uma avezinha com fome e insegura para voar sozinha. Ela, uma mãe, tivera tão grata surpresa ao descobrir-se nos braços do filho numa volta mais escarpada do caminho que se comovera com aquilo e viu que sua dor, o latejar da sua dor era mais um aspecto do crasso egoísmo com que ultimamente muitas mães procuram ser mais feliz que os próprios filhos. Portanto ela não tinha nenhum direito de continuar descamando a sua dor e pondo-se em risco de nunca mais recompor-se com a sua natureza original e felina de mãe completa que assumia os filhos e era rocha, barco e ninho para meninos tão dóceis. No dia em que Miguel a viu de pé oferecendo-lhe uma xícara de café, o café que dela proviera, que amadurecera nas suas mãos, sentira que voltara a ser a camponesa que semeava o próprio trigo, que cultivava a própria terra, que colhia os frutos maduros e cozinhava o próprio pão. E Miguel fora sublime e a reconhecera logo. Reconhecera-a levantada do chão e pronta pra seguir no caminho. Reconhecera-a disposta a continuar com as próprias pernas o trajeto no qual uma pedra mais avara se tinha interposto. Assim ela abriu os olhos e viu pela primeira vez o novo dia com a mesma alegria que tinha tido quando se pusera consciente em todos os dias precedentes àquele, até remontar ao instante material e táctil em que ela pensou – hoje acordarei tranquila e lúcida, serei timão e farol pros meus filhos. Veio o ar, era o primeiro ar viril do novo dia e ela respirou-o constante e agradecida. Quando pôs-se sentada na cama e friccionou as coxas estava ainda mais agradecida com as primícias de contentamento e tranquilidade que lhe traria todo aquele dia.

         Ergueu-se. Logo estava vestida. Pronta para todo o trabalho a que se havia reservado para aquela manhã. Saiu pelo corredor da casa, parou diante da porta do quarto dos filhos. Não ouviu nada e então estava claro que ainda dormiam. Bem na sua hora. Entrou na cozinha e foi logo surpreendida pelos vapores antigos de frituras e cozimentos. Acendeu o fogo e preparou o café. Quando Miguel viesse lá de dentro a encontraria com o café feito, o almoço preparado e ela que lhe diria, toma o seu café meu filho, pus banana frita, arroz e tutu bem grosso na marmita. Você gosta de couve e eu pus fios de couve verde refogada. Você vai gostar muito meu filho. Então ela pensou que o dia se estenderia ancho e imóvel assim que o sol se firmasse luminoso no céu e pensou também que Miguel sentiria o desconforto da fome embrulhando o estômago vazio só com uma xícara de café até o meio dia. Foi assim que pôs uma fatia de presunto sobre o pão pra reconfortar melhor o filho e sua fome. Quando tinha acabado de preparar tudo isto, acercou-se de uma cadeira e sentou-se nela muito tranquila e feminina, enfim ela era uma mãe plena e sem horror de si.

         Foi aí que ela ouviu que raspavam a porta da cozinha com a unha. Não era o cachorro. Não era o gato. Podia ser o vento, mas esta hora ela sabia que o vento era o silêncio passando entre as folhagens da mangueira apenas farfalhando-a sem resistência. Então ela parou de pensar e ouviu com a atenção toda voltada para a porta. Compreendeu assim que deveria abrir a porta e constatar que era quem ela já adivinhara. Levantou-se e quase tropeçou nos próprios pés porque estava confusa e não podia crer logo que acontecesse o que realmente estava prestes a acontecer. Chegou até a porta e sentiu percutir-se toda, sobretudo seu coração. Abriu-a e uma luz espessa e firme de uma intensa manhã prateada encandeceu seu rosto. Quando pode ver através da luz o viu postado no umbral da porta.

         __Entre – ela disse.

         E ele entrou na cozinha como um homem triste e calado. Quem senão ele? Ela fechou a porta atrás de si e a penumbra voltou à cozinha. Não o olhou logo, mas o tinha reconhecido sem precisar disto. Já o vira e compreendera tudo sem nada inquirir. Ela passeou os olhos pela cozinha e primeiro viu as frutas sobre o balcão. A casca escura das frutas expunha o óbvio – estão podres. Não se demorou neste pensamento, eram frutas maduras que tinham apodrecido na cesta. No outro extremo os ovos. Quantos ovos? Não os contou. Eram ovos de galinha. Pusera-os ali um dia. Adiantou-se até o meio do cômodo e o viu com fome parado adiante dela.

         __Sente-se – ela falou.

         Ele se sentou do outro lado da mesa. Então ela viu que ele não ocupara a cabeceira da mesa, seu lugar natural. Apontou-o, mas ele recusou-se com os olhos baixos e ela não insistiu mais por enquanto. Serviu-lhe café, pão com presunto, serviu-lhe ovos, uma fatia de queijo, leite. Viu-o comer com avidez. Sentou-se com ele a mesa. Só então viu que além da fome estava sujo e maltrapilho. Não era um mendigo porque agora tinha um lar, mas não era improvável que mendigasse antes de chegar de volta a casa. Quando ele acabou de comer ela viu que não ousava levantar os olhos. Então ela estendeu-lhe as mãos por cima da mesa e como ele permanecesse imóvel, esticou-se toda e colheu suas duas mãos ásperas e disformes. Viu-as feridas, chagadas entre os dedos. Pontos de úlceras dolorosas nas palmas. Os dedos comidos. Sem repugnância abriu-os e pensou que podia curá-los com água de bicarbonato. Efetivamente ela podia. Os lábios secos, furúnculos nos braços. Mas então ele quis falar e ela temeu que ele fosse se explicar. Temeu que ele fosse proferir um ‘eu não sou digno’ e ela se adiantou para impedi-lo. Impondo-lhe silêncio, desnecessário explicar tudo. Ela que já tinha compreendido e não precisava mais nada. Tinha-o outra vez em casa. Não precisava mais nada. Tinha-o perdido e o encontrava de volta. Levou-o ao quarto. Mostrou-lhe sua roupa guardada, sua tolha no banheiro, seu lugar na cama. Era sua a casa, era sua a esposa. Mas ele não reconheceu-se logo, e como ela adivinhasse isto no pensamento dele, assumiu para si a tarefa de fazê-lo entender que nunca tinha sido dissociado do seu lugar.

         Mas ela ouviu passos na casa e o deixou no quarto para atender quem era e era Miguel. Pensou em contar logo tudo ao filho, mas pensou também que não era apropriado que Miguel visse o pai em tão lastimável estado. Esperaria que Miguel voltasse pra casa à tarde que seria quando o pai já teria descansado e se recomposto como um homem. Quando entrou na cozinha o filho terminava o café e já estava pronto pro trabalho.

         __Deus te siga meu filho – disse ela.

         Miguel cumprimentou-a sonolento e saiu pela porta da cozinha. A mãe seguiu-o e ainda o viu parado no degrau do quintal. De costas era o mesmo que o pai, de frente procurava desenvolver feições próprias. O sol era uma flor luminosa e incandescente no céu azul e parado. Não prestou atenção na mangueira, mas pode concluir de onde estava que nenhuns dos frutos que pendiam dos cachos de flores amadureceriam naquela primavera. Quando Miguel terminou de descer os degraus e saiu para a rua pela portinhola do quintal ela voltou para dentro pra por ordem na nova realidade da casa que começava agora. Caminhou pelo corredor e Paulinho ainda estava dormindo, não acordaria o menino, mas o deixaria dormir até ele descobrir que não tinha mais sono. Depois quando Paulinho acordasse revelaria primeiro a ele que o pai tinha voltado depois daquela enorme e despropositada ausência. Só então ouviu o barulho da água caindo no banheiro e pode se propor um pensamento – quando tudo aquilo tinha começado? Foi logo antes do tempo em que ela se sentiu completamente vazia e sozinha pisando nas pedras que fugiam de seus pés. No momento em que não pode mais encontrar amparo no homem que se constituíra como dela e dera-lhe os filhos e a pusera dentro de uma casa para ela cuidar e criar os filhos, foi aí que sentiu sufocar-se na própria dor e espojar-se na própria ruína. Depois veio Miguel que como ela já sabia tinha-a ensinado que também se vive sem amparo presumido. Mas antes não tinha sido fácil. No dia que se lhe revelou isto – foi embora, ele que não queria ficar, que precisava de uma vida sem a mulher e os filhos, que precisava de uma outra felicidade além desta que só se pode dar-se por algum tempo. Foi embora porque se cansou deste tipo de vida feliz. Nenhuma revelação de onde parara. Talvez para sempre procurando. Levou o que tinha. O ordenado do mês e as economias do banco. Lá longe onde morava até a mãe dela soube disto. Soube o que ele tinha feito com ela e telefonou repreendendo-o. E a irmã? Até esta divorciada soube e não deixou de dar-lhe seu conselho, que era pra não sofrer e que a vida era assim, mas não acabava porque faltava marido em casa.

         Não acabou por causa de Miguel. Ele veio com sua coragem, suas mãos limpas e assumiu o trabalho de jardineiro que inventa girassóis, planta boninas e guarda sementes na terra. Miguel quem joeirou tudo e conservou o trigo louro. Miguel que proveu o pão e foi à candeia que fez a noite amiga. O filho se rejubilaria com a volta. Quem que não se alegra com um pai redivivo?



         Sentou-se na beira da cama e depôs as roupas do marido sobre o colo. Quando lhe entregasse as peças providenciaria a cura para suas micoses, sua tosse, sua blenorreia. Guardaria segredo da blenorragia e a curaria sem alarde. Ouviu-o acabar o banho e esperou que ele a requisitasse, mas como não o fez levou-lhe as coisas. Quando ele voltou ao quarto encontrou-a na porta.

         __ Dorme um pouco – perguntou ela.

         Quando ele se sentou na cama ela se retirou do quarto fechando a porta. Ficou parada do lado fora sem querer escutar o que se passava lá dentro, apenas atenta pra saber se ele ainda queria alguma coisa. Como não tinha nenhuma requisição dele foi viver o resto daquele dia com as intensidades necessárias que havia cultivado pra ela. Quando Paulinho acordou lá dentro ela ouviu o menino e aguardou-o, mas sem nenhuma ânsia imediata de revelar-lhe de repente a prolífica surpresa que o aguardava. Veio então o menino estremunhando e a mãe o pôs diante do alimento:

         __ Come meu filho.

         E ele era um menino taludo e pardo. Os cabelos eram de uns caracóis grossos e escuros. Quando era um menininho andava sempre nu. Mas depois cresceu e ela não o conheceu mais assim. Mas ainda lavava suas roupas íntimas e sabia que o corpo dele fervia nas trevas da adolescência. Pôs-se a mexer a panela no fogo, mas ficou atenta a mastigação de Paulinho. Ouviu-o arrastar os pés e jogar pedaços de presunto pro gato. Pensou que podia dizer, não faça isto meu filho, mas quando voltou-se pra ele disse-lhe apenas isto:

         __ Teu pai está aí.

         Não compreendeu tudo o que viu no rosto do filho, mas atribuiu a expressão indecisa ao choque da vaga surpresa. Paulinho olhou para as migalhas de pão sobre a mesa e passou a juntá-las com as costas das mãos em três montinhos distintos. Ela voltou-se para o fogão e fingiu acertar o sal da panela. Insossa nem mesmo a vida vale a pena. O gato veio roçar-lhe as pernas e a pelúcia do animal doméstico provocou-lhe um arrepio que susteve-a um pouco fora de si. E como tinha ficado fora de si concluiu que os filhos tinham uma vida própria agora e que nem ela que era a mãe e nem o pai que tinha voltado poderiam assumi-los completamente como se havia feito até algum tempo atrás. Sempre era hora de deixar que cada pássaro assumisse o risco do próprio voo e se pusesse nos ares com o olhar estendendo-se pelo horizonte e além. Ainda os resguardaria por um tempo, mas muito brevemente sabia que viria o instante preciso em que ela olharia em volta e não teria mais nenhum dos filhos exigindo suas mãos próvidas. Disso não tinha dúvidas.  E reconduziu-se a si para continuar vivendo aquele dia que já era meio dia.

         Veio a tarde e ela que tinha atrasado-se um pouco no seu trabalho doméstico precisou esperar até as últimas horas para terminar tudo. Mas não deixou de cumpri nada a que se havia proposto e quando Miguel entrou em casa a janta já estava na mesa e ela pronta para dizer-lhe:

         __ Meu filho, foi o teu pai quem voltou e já está no seu lugar à mesa, vem e come com ele.


 


 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

POESIA - SUMIDOURO

 

1

Rio-me sozinho, aflito,

Contento-me com tão pouco

Que logo virá o vento implume

E me desfolhará nos mapas.

 

Não trago nas mãos,

Nem impresso na pele

nenhum curso possível,

Nenhuma rota navegável.

 

Mesmo que eu siga assim:

Boca imóvel, gesto apagado,

Silêncio audível, peito inerte,

Não encontro rastros, sinais

de lume nas águas paradas.

 

2

Quando nem o labirinto está visível,

Quando nem as flores que cultivamos

secam fechadas nos livros,

É que somos sombras, raízes pútridas.

 

Quando voar deixou de ser nossa inocência,

Quando sucumbimos inscritos no sono,

É que quebramos espelhos planos,

Partimos as asas nas voltas do caminho.

 

Assim pouco restou deste monumento votivo,

Eu, arquitetura simplíssima, desmonte,

Restos de colunas e mastabas antigas,

Minha estátua, prenhez de limo e lodo,

Gretam-se os olhos e as memórias esquálidas.