As doidas
Quinco
Chaves entrou pela porteira da propriedade e seguiu para o alpendre da casa.
Trouxe com ele Nonô e Tobias os dois outros trabalhadores que vinham se alugar
também, pois o tio de André precisava que reparassem as cercas estouradas e a
casa da propriedade antes que começasse a chover e os trabalhos ficassem
restritos à lavoura.
Quinco
Chaves subiu os degraus do alpendre. Os outros pararam no terreiro, encostaram
as ferramentas na parede do armazém e esperaram sob a figueira.
O
proprietário levantou-se da espreguiçadeira e caminhou para o capataz porque
Quinco Chaves gostava de ser tratado com deferência apesar de ter sido o tio de
André quem o chamara para resolver com ele o acerto pelo trabalho.
Cumprimentou-o, convidou ele para sentar-se, mas Quinco não respondeu e
continuou de pé na entrada esperando que ele começasse. O tio de André precisava dizer a Quinco Chaves que as cercas tinham
estourado e havia também muitas estacas que tinham de ser substituídas antes
que ele precisasse soltar o gado na mata para plantar no brejo. E também como
as chuvas chegariam e a mulher tinha medo das cobras que vinham para perto das
casas com o mato crescido e já denso no oitão, ele precisava que os homens
limpassem aquele mato e expulsassem as cobras do terreiro.
Só
então o tio de André pensou que a mulher sempre encontrava um trabalho que
deveria ser feito na propriedade e que ele nunca podia parar e respirar nem na
hora do calor quando a tarde era tão quente e o vento que soprava era áspero e
agressivo. Olhou para os homens parados sob a figueira eles também esperavam
que ele fosse o primeiro que falasse.
Naturalmente
ele combinou as ideias e procurou as palavras porque falaria para Quinco Chaves
seu preço e ele sabia que o capataz não se alugaria nem a seus homens por um
salário que não quisessem receber pelo trabalho que eles dissessem – é justo. O
tio de André salivou e pensou em cuspir no assoalho, mas ele também sabia que
Quinco Chaves não se sentiria respeitado com um gesto desses de um
proprietário. Então antes de falar engoliu a saliva e olhou o homem escuro que
ele tinha diante de si esperando que ele começasse a falar para compreender
porque o tinham chamado ali.
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É que já chegou o tempo de cuidar das cercas – o tio de André disse.
Quinco
Chaves apoiou-se numa perna e esperou mais. Lá no terreiro os dois homens
tinham se encostado no tronco nodoso da figueira. Eram Nonô e Tobias e um deles
era o genro e o outro era o filho de Quinco. O proprietário esperou que o
capataz falasse, mas o homem só esperava. Assim ele afastou de si uma mosca
imaginária antes de continuar explicando.
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Soltaremos o gado, plantaremos no brejo, as cobras estão quase entrando na sala
e dormindo nos quartos, temos tantas goteiras que não precisamos da bica, o
reboco está solto, vejo as varas. Eis aí o problema.
___
Faremos o serviço – Quinco disse.
O
tio de André olhou-o com força antes de propor o preço, tinha certeza de que o
homem não se renderia ao salário que ele estava pensando que era o que podia
pagar naquele ano. Não se informara muito, mas já sabia que os outros
proprietários estavam pagando mais pelo aluguel deles. Mesmo assim ele tinha
que falar o preço, pois já tinha chamado o capataz, já tinha explicado o que
precisava e não pararia antes de saber de Quinco Chaves como ficaria o serviço
naquele ano.
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Empeleito você e os homens, mas não posso mais do que pude no ano passado – o tio
de André falou – as filhas doentes, Dona Neném você sabe. Caruncho no milho e
bicudo no algodão.
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Seu preço major – perguntou Quinco Chaves.
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Meu preço seu Quinco – ele disse.
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Não aceitamos – Quinco falou.
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Compreenda seu Quinco – desviou o olhar do capataz – eu até posso liberar pra
você usar a terra sem renda.
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Não pago renda major – disse Quinco.
___
Entendo. Mas um ano como este...
___
Igual aos outros – Quinco perguntou.
O
tio de André deu um passo atrás e olhou as paredes gretadas do alpendre. Ali
dentro das gretas se escondia uma aranha peluda de olhos verdes olhando-o de
dentro do escuro. Apalpou-se procurando o fumo para ter com que ocupar-se antes
que achasse as palavras com as quais apelaria ao capataz.
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É quanto posso pagar seu Quinco. E não posso mais do que pude no ano passado.
___
Esse é o seu preço major?
___
Não tenho outro. Vá entendendo.
___
Entendo. Entendo. Entendo.
Consternado
o proprietário olhou o homem. Quinco Chaves estava plácido e na sua cara preta
não se movia um músculo. O tio de André cruzou as mãos atrás das costas e só
então continuou falando:
___
Portanto o senhor não aceita o serviço – ele perguntou para Quinco Chaves.
___
Poderia aceitar – Quinco Chaves perguntou.
___
Entenda – o proprietário disse.
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Já disse que entendo major – Quinco Chaves falou.
___
Mas não aceita – o tio de André falou.
___
Não aceito não – Quinco Chaves disse.
___
Como fico seu Quinco – o tio de André perguntou.
___
Ofereça outro preço.
___
Não posso. Eu já falei. Não posso seu Quinco.
___
Os outros proprietários estão pagando – Quinco disse.
___
Não sou um desses proprietários.
___
Não se melindre major.
___
Não me chame de major seu Quinco.
___
O major é que não quer entender que o preço que pedimos não é injusto.
___ Já disse que não sou major e se não pode
receber o salário que recebeu no ano passado não quero seu serviço na
propriedade.
___
O serviço é seu, major.
___
Leve seus homens, leve suas ferramentas seu Quinco. Não temos acordo.
O
tio de André deu as costas para o capataz e foi entrando em casa. Quinco Chaves
desceu os degraus, tomou as ferramentas e seguiu com seus homens para fora da
propriedade. Quinco Chaves caminhava pela estrada pensando como o major gostava
das demandas.
O
tio de André entrou em casa batendo a porta da entrada e acordou a mulher que
dormia a sesta no quarto. Parou no corredor da casa e ouviu uma vespa zumbindo
no buraco do reboco. Caminhou até o quarto contiguo ao da mulher e deitou-se na
rede.
___
Você não dormiu Cazuza – a mulher perguntou. Estava no quarto ao lado e sua voz
chegava por cima da meia parede.
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Não pude mesmo, tive um desentendimento com seu Quinco Chaves.
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Espero que possa perdoá-lo Cazuza.
___ ...
___
Lembre-se querido, antes que comecem as chuvas vamos chamá-lo para os serviços.
Há algumas noites que eu já escuto eles caminhando no telhado. Começaram andando
atrás da casa. Rezei, mas eles não pararam. Passei muitas noites ouvindo eles
caminhando em volta da casa. Gargalharem no terreiro da frente. Depois subiram
pelas paredes e já faz duas noites que eles correm sobre as telhas. Probrezinha
da Selminha. Está desarvorada.
O
marido ouviu calado. Estava sentado na rede e pensava para quem era que a
mulher rezava tanto, pois nunca tinha conseguido salvar as filhas. As filhas
todas possessas e a casa tomada. Uma Legião dormindo sob o leito delas. E agora
aquela coitada da Selminha.
___
Cazuza – a mulher chamou-o do outro lado da parede. Como ele não respondeu ela
gritou – Cazuza!
___
Pronto – respondeu o marido.
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Como ficaram as coisas entre você e Quinco Chaves.
___
Não muito boas.
___
Ele pediu mais dinheiro para se alugar?
___
Não. Mas parece que eu deveria ter oferecido mais.
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Cazuza, você deveria ter pensado que mais cedo ou mais tarde precisaremos deste
homem. Logo teremos outra louca em casa. Vai ser imprescindível mais uma cela
no quintal.
___
Bem, seu Quinco me deve muito pelo arrendamento das terras onde ele planta.
Logo ele vai pensar nisto e aceita o que eu quero lhe pagar.
A
mulher ficou calada. O tio de André levantou-se da rede, caminhou até a
prateleira e pegou o samburá. Tomou linha, chumbada e anzóis. Sentado na rede
aprestava-se para ir pescar no rio. Preparou um chinu, mas também um maruseigo.
Prendeu a linha nas taquaras que ele guardava atrás do armário e pensou olhando
para fora pela janela que estava aberta que como o sol agora quebrava, logo
seria fim de tarde e os peixes sairiam das locas para pastar o capim na margem
do rio.
___
Querido quando puder mande chamar Quinco Chaves, ele também precisa de nós, não
é a mulher dele que vai ter outro filho?
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Não – disse o tio de André.
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Pensei que por esses meses eles teriam um filho – a mulher disse.
O
marido levantou-se da rede, guardou o samburá com as coisas dele e tomou as
taquaras.
___
Você vai sair Cazuza – a mulher perguntou.
___
Vou dar uma volta no bananal – respondeu o marido.
___
Diga pra André que preciso que ele me ajude com Silene, hoje vamos banhá-la,
sim?
O
tio de André saiu pela porta da cozinha e caminhou para o rio pela vereda do
poço. Quando passou atrás da cela de Silene sentiu o fedor de mijo e bosta que
a doida tinha esfregado nas paredes. Três filhas doidas na família. A mulher
acreditando nas rezas e nos santos. Silene. Mocinha. Selminha. Castigo.
Vagamente pensou nas premonições da avó quando ele disse – caso com Dona Neném,
minha prima.
Terminou
de descer a vereda e encontrou André sentado na grama atrás do poço. Tinha
armado o visgo e estava ansioso pelos coleiros que vinham beber água.
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Sua tia precisa de você. Hoje banha-se Silene – disse o tio.
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Vou pescar com o senhor – disse André.
O
tio olhou-o e depois disse:
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Está bem. Pegue uns gafanhotos negros.
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Sei onde tem uns lambaris enormes tio.
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Muito bem. Vamos logo.