quarta-feira, 30 de junho de 2021

CRÔNICA-CADA VEZ MENOR

 

Cada vez menor

         O céu estava escuro quando André chegou à margem do canal, era um rio que tinham canalizado para não ir comendo a cidade quando chovesse lá na serra e toda a água descesse para o vale. Então André caminhou pela margem do rio pisando firme a calçada do canal. Olhava a água turva do canal, mas não pensava que tinha chovido na outra noite. Não era comum chover com intensidade naquela época do ano. Mas como André caminhava seguindo, não se ocupou com os peixes do rio nem com a água que descia no leito.


         Seguiu até os arredores da cidade onde havia menos clamor geral. Lá atrás ficara a avenida e ele agora caminhava margeando o rio por uma rua com pavimento de pedras. Concentrou-se nas pedras que ele pisava sentindo-as sob a planta dos pés. Eram pedras frias, mortas, rejuntadas, mas a erva insistia entre elas. Mas ele também insistia entra as pedras.

         Olhou o ar, viu que o ar era crespo e frio. Encolheu-se sentindo a umidade crepitante da tarde plúmbea penetrar seus ossos, espetar seu sangue. Caminhou mais, não se recordava do frio há muito. Sabia que quando chovia fazia frio, mas a tarde não estava fria porque tinha chovido, era o vento, eram as nuvens, eram os muros úmidos das casas, a ausência de pássaros e as folhas das árvores fechadas em si que traziam o frio.

         Seguiu rota já trilhada, nunca seguia caminho que não estava num mapa. Conhecia aquela rua, conhecia aquela encosta, subiria por aquela escada. Estaria lá em cima, a cidade em baixo. Veria a cidade silente, ele indiferente olhando uma cidade que se agitava para voltar pra casa. Parou no alto da rua. Lá embaixo o rio canalizado. Falso animal selvagem domado. O rio corria detendo-se nas pedras, nas cloacas, nas ramas de salsa e capim. André contemplava a irradiação de um mundo que se tinha coberto de escamas e onde moscas cresciam brotando de cada podridão necessária para criar uma cidade e fortalecer os homens que conviviam entre baratas e ratos como instrumentos necessários para sua civilização constante.

         De repente começara a pensar coisas formidáveis como acontecia quando ele se concentrava na aula. Aí veio-lhe um pensamento de Marina. Voltou-se para onde ouvira três vozes. Duas não tinham falado com ele, mas a menina que tinha falado olhava as outras. André prestou atenção. “Aí tem cobra.” Ela disse. Olhou-a sem compreender logo, mas não era com ele que ela falava. “Aí tem cobra.” Não era com ele. As outras a ouviam, não eram tão espertas, não sabiam das cobras no caminho.

         A menina que sabia das cobras tinha aprendido a caminhar entre répteis, sarças e salamandras. Ela era escura e soubera que nem no quintal de casa se brinca tranquila sem pensar que em alguma greta ou sob uma pedra esquecida sempre nos vigiam os olhos do perigo.

         André retomou o caminho. A terra úmida. A umidade da terra se compunha de cheiros limosos, pedaços de uma memória tão antiga que lhe trazia a voz do avô olhando as palmeiras se retorcendo no meio da ventania e logo espessas gotas de chuva molhando a areia e levantando no ar o bafo de coisa quente e dourada.

         O avô era um gigante pardo, umbroso, hostil.  E ele ficara sendo assim também.

         Lá adiante o rio ainda era livre e sem margens. Pedras brancas cresciam como ovos pré-históricos na paisagem. Enquanto André caminhava ao pé do muro de pedra a solidez das coisas foram se decompondo. A propriedade do Dr. Quirão emparedava as árvores e as árvores transbordavam por cima do muro baixo. Lá longe a claridade de um sol extremo, declínio do dia, últimos fastos da tarde.

         Por um instante parou diante do portão, aço antigo, consumindo-se. Atravessou-o, seguiu pela estrada que o levava a chácara. Ouviu a folhagem dos galhos mais altos impondo-se ao vento. Melhor deixar que passe, que voe sem resistência. Entrou na quinta e caminhou para perto da casa. Os cães o tinham reconhecido. Melhor. Ficou diante da construção branca, nos pés da parede o limo escurecia a cal.

          Tito apareceu:

         __Olá, Sabujo – saudou.

         __ Olá, Tito – André falou subindo os degraus.

         Sentaram na varanda da casa olhando para fora. Grossas camadas de folhas e galhos cresciam para o alto. O vento tinha voltado com mais força e a chuva se imiscuía na folhagem das árvores. Mas não era a chuva constante, era a chuva insistente.

         __ O vento traz a chuva – disse André.

         __ Está assim sempre – disse Tito.

         __ E seu pai – perguntou André.

         __ Ainda no hospital. Algum parto de trinta e sei horas.

         __ Até pra nascer é assim – disse André.

         __ Você vai entrar – Perguntou Tito.

         __ Entro. Vai chover mais agora.

         André entrou. Dentro o silêncio aburrido da casa que tinha escolhido viver entrevista através de grades e muros de pedra. Quando Tito voltou pra sala trazia a bebida.

         __ Cerveja – Tito perguntou.

         __ Conhaque né.

         __ Sirva-se.

         __ Estou com frio doutor – André falou.

         __ Larguei a faculdade, sou livre agora – Tito disse.

         __ Seu pai sabe – André perguntou.

         __ Não sabe por que não quis saber.

         __ E o que acontece agora?

         __ Imagino – Tito falou.

         __ Na forca ninguém é livre – André disse.

         __ Nem pra balançar na corda?

         __ Nem pra morrer enforcado Quirão.

         __ O parteiro deve me chamar pra explicar – Tito disse.

         __ Alguma novidade – André quis saber.

         __ Já sei quem matou Boulay.

         __ Maigret sabe?

         __ Suspeita de alguém – falou Tito.

         __ Emile tinha inimigos – André disse.

         __ Não sei pra que essa morte de Mazotti.

         __ É um suspeito.

         __ Mazotti – Tito perguntou.

         __ Não, Mazotti é bucha.

         __ E depois que acabar – Tito perguntou.

         __ Você ler outro – André falou.

         __ Mais conhaque?

         __ Não estou bêbado ainda.

         __ Voltou a chover lá fora – Tito falou.

         André sentou-se na poltrona, escutou lá fora. A água escorria no solo. Primeiro a água escorria nas folhas, nos galhos.  A água lavava a terra. André olhou Tito. Tito fez um gesto. Repúdio de André.

         __ Marina para sempre – André falou.

         __ Me esqueci de recolher os cães – Tito disse.

         __ Cães se recolhem sozinhos, não ficam na chuva nunca – opinou André.

         __ Eles que se afoguem – Tito disse.

         __ Parou de chover – André disse.

         André ergueu-se, contornou a mesinha de centro, se pôs em pé no meio da sala. Ouviu o que se passava lá fora através dos sons parados. Caminhou até a janela, a vidraça embaçada. Limpou-a com a palma da mão. A noite tinha entrado úmida e vasta na chácara. Escreveu uma letra no vidro. M de mar, de medo, de mula, M de mel.

         __ Quer saber de uma coisa Libório – André perguntou.

         __ Não sei se devo – disse Tito – Você vai me contar – Tito perguntou.

         __ É sobre Marina que você quer saber?

         __ Um pouco sim, mas tem outra coisa.

         __ Falo sobre Marina – André disse.

         __ Então quero saber sobre Marina, me conte alguma coisa.

         __ Te conto que acabou – André disse.

         __ Não foi melhor – Tito perguntou.

         __ Pior não foi – André falou.

         __ Vamos beber – Tito disse.

         André voltou a poltrona. Fechou os olhos e concentrou-se na respiração do amigo. Tito resfolegava, consumia-se na asma voraz. O ar era áspero e ralo na sala. Quando abriu os olhos contemplou a figura de Tito crescendo no espelho.

         __ Quando foi aquele retrato Tito?

         __ Quando eu não era humano.

         __ Você se lembra do seu pai – André perguntou.

         __ Do parteiro eu me lembro, mas não me lembro do meu pai.

         __ Havia uma coisa grande, uma coisa que se revelava cada vez mais promíscua e necessária entre mim e Marina.

         __ Você quer beber Sabujo?

         __ Me viciei, quase não estudei mais. Ficamos dependentes. Quanto tempo foi isso? O tempo não vai ser contado. Depois ficamos mudos e não havia mais palavras em nossas bocas. Compreendemos que nossos olhos se falariam e que nossos pensamentos se comunicariam. Mas aí eu soube que o amor foi ficando cada vez menor até desaparecer entre nós.

         __ Sabujo tudo que não acaba parece ficar doendo como um prego na mão, como uma ferida no lado.

         André inclinou-se para frente. De repente ouviu rasparem o chão da varanda. Eram os cães com frio. Olhou para o vaso, um ramo de flores artificiais, uma pintura de rio parado e um moinho, uma prado, duas meninas no campo. Tudo isto era tão crasso e impróprio. Sentiu-se feliz. Tito reclinara-se no sofá. O vento e a chuva tinham recomeçado a dança.

         __ Dorme comigo André, estou sozinho na nau – Tito falou.