Jogo da cabra-cega
E ENTÃO ELE soube que tinha caminhado até ali e era um homem sem cansaço que olhava o horizonte sem voltar-se, sem pensar no caminho que percorrera para ficar olhando e contemplando a paisagem nula. Se atravessasse a rua continuaria caminhando na calçada oposta aonde havia mais sol e as fachadas das casas era claras porque incandesciam na luz da manhã branca e movente. Estendeu um braço, mas as pontas dos dedos não chegaram à superfície da parede próxima, mesmo assim ele sentiu a sua rígida evidência táctil como um animal manso que não se retrai ao toque humano. Prosseguiu descendo a rua porque ele atravessava o meio da cidade e outros rostos silentes e perplexos também com a mesma ânsia, o mesmo interesse em conduzir-se para casa onde lá os esperaria o conforto do almoço no prato e da mulher e dos filhos servindo-se do alimento como um fruto apaziguado nas mãos dum homem. O que ele sabia é que não estava sozinho no mundo e sabia também que os galhos que floresciam nos jardins não eram somente o milagre da terra, mas o produto da arte de quem cultivava as plantas e aguardava o dia em que amanhecessem florescentes e intranquilas como um cavalo nascido.
Aquelas flores eram flores que nasciam da terra limitada dos vasos e isto não diferia do que eram as pessoas que estavam caminhando pelo mundo com ele. Isto não diferia das palavras que estavam impressas nos livros que ele lia e juntava-os em ideias e compreendia-os como pensamentos humanos. Tudo que havia não era senão um pouco de terra úmida reservada numa jardineira onde a erva crescia tenra e medrosa entre os caules das plantas cultivadas. E havia mesmo até vasos de flores artificiais substituindo a natureza domada das samambaias suspensas. Mas o que o trouxera até ali? O que o fizera penetrar naquele reino de flores, vasos, terra e jardins humanos? Ainda que seu pensamento não fosse um bloco sólido e arestoso ele bracejava para sair daquele deserto. Voltara finalmente à vaga lembrança de que estivera toda a manhã entre muitos olhares e muitos ouvidos que pegavam no ar as palavras materializadas nas ideias alheias que ele repercutia doutamente. Quando decidira que podia conceder de si aquilo que não nascia dele? Aquilo que aprendera expectante, mas sem refinar-se para o mundo? Enfim, soubera um dia já haver escolhido que sobrara para si somente a arte de coadjuvar na terra como um professor.
Só então pensou nos livros e nos papéis do embornal apalpando-os com a palma da mão direita através da lona. Foi um pensamento sem ternura e mal voltado e isto o impediu de poder continuar pensando com qual suficiência agia como um ser humano. Agora era tão perto de meio dia que a sua sombra era longilínea e o escuro da sua pele refletia um matiz vermelho com pequenas gotas de suor iluminando os poros. Se estivesse cansado sentaria para descanar e depois continuaria seguindo para ver se chegando encontraria a tranquilidade e a paz lânguida dos dias inúteis. No entanto, não podia afirmar que fosse cansaço esta sensação de ser tardo e improdutivo depois daquela manhã que o antecedera e em que se esvaziara para reviver na memória de quem já viajava para longe ou voltava pra casa olhando a paisagem que passava pela janela do ônibus ou estava parado dentro dum quintal onde crescia uma árvore da qual se esperava bons frutos que nutririam toda a família e resguardaria a continuidade de toda uma espécie de seres inteligentes que trabalhavam e compravam coisas como móveis, espelhos, guarda-chuvas, que eles protegeriam dentro de casa como um tesouro subitamente logo encontrado.
Quando ele entrou na praça assustou-se com o intrincado das sombras da folhagem das árvores e com a aparência de terra úmida dos canteiros do jardim público. As árvores eram já antigas e tinham crescido espraiadas cobrindo o largo reservado para a praça. Atravessava-a com interesse pelos bancos de madeira, pelo aço das luminárias retorcido em capiteis, pelos crótons, pelo cheiro de minhocas sob a terra dos canteiros.
Aí lhe ocorreu o maior susto quando sem parar pra contemplá-la surgiu-lhe rígida e angulosa a catedral de aspecto vasto, cru, erguendo-se da calçada larga, a catedral de um amarelo rígido, era insultada pelos pontos de cagadas de pombos nas platibandas e beirais. A construção incandescia sob o meio dia e o relógio da torre era um olho aberto, disforme, enorme, um olho tão concentrado que olhava para fora e visava às coisas que existiam lá longe sobre a cidade e sobre os telhados. Quase se podia ouvir a respiração sufocada do sol queimando os corpos descansando na pausa do trabalho e no esforço de pensar assim – finalmente é isto, a felicidade não está aqui, mas não fugiu como um réptil liso e assustado. Desviou o olhar para as árvores porque começava a sentir uma vertigem por causa da inumanidade fria da construção e do dia que já separava-se em duas partes, uma manhã onde ele vivera como um ser útil e uma tarde dentro da qual viveria tateando os seres presos na claridade dura e espectral.
Percebeu que o sol ardia na folhagem mais alta das árvores e o verde da vegetação fundia-se nas sombras escuras dos galhos mais baixos, aquelas árvores eram tão antigas que os galhos eram troncos roliços perigosamente suspensos no acima dele. Havia pássaros vivendo nas árvores e ele sabia que também encontraria ninhos e a vida dentro dos ninhos esperando sua vez de nascer. Mas como queria esquecer todo aquele ar irrespirável da praça, o professor atravessou a rua pra continuar caminhando na calçada do outro lado e enfim dobrar a esquina com a atenção voltada ao outro ponto da sua vida. Novos meandros do labirinto viriam e ele ouviria com atenção seus passos para conduzi-lo seguindo o fio até ao pórtico por onde havia penetrado naquela escuridão horizontal.
De repente quem sou eu – o professor quis saber de si. E esse pensamento foi tão súbito que ele ofegava e a sua respiração ficou áspera e descontínua. Isto não era uma ideia, não era uma memória, não era uma flor crescendo num vaso com terra escassa. Era um homem quem queria saber de uma coisa cuja evidência estava inerte e não se movimentava para além dele. Parou, antes de atravessar a rua. Mas, para onde – perguntou-se o homem. Assim ele era um homem parado antes de chegar ao outro lado da rua, esperando que viessem conduzi-lo nos braços, esperando que viessem acolhê-lo como um filho sofrendo, de repente ele se fizera uma pessoa que seguia caminhando e que se bifurcara num deserto e agora estava em perigo. Quem para reconduzi-lo, impor-lhe o melhor caminho, ensinar seus rastros? Fechou os olhos pra abafar um pouco o medo que o tomara, respirou compassadamente procurando encontrar o ar nos seus pulmões, estendeu um braço diante de si. Estava mais uma vez tateante. Era um cego e não havia guia pra sua noite sem voos, sem farol indicando águas rasas, pontas de rochas, animais marinhos cristalizados, sem esses mapas ele seria um naufrágio. O vento passou e ele sentiu que vinha a tempestade. Esfregou as mãos no rosto e a barba espinhenta revelou-lhe camadas de pele morta que ele precisava desvestir. Mas é só isto, Pedro Simão – o que o homem perguntava-se e queria saber era se acaso ele fizesse como as cobras que desvestiam a pele sob a folhagem da erva do campo ele seria um ser novo quando acordasse para uma nova forma de vida. Sua pele eram camadas de negrume que ele vestira e que lhe pertenciam como sua própria carne, como um invólucro que continha sua humanidade. Era sua pele, era ele mesmo. No entanto, como desvestir-se e impor a si uma nova condição tão humana que não precisasse estar durante dias deslizando entre as pedras, ferindo os pés nos cardos ou esperando que viessem resgatá-lo com o óbolo do próprio sangue? Tremendo de medo o homem voltou-se para trás e procurou divisar a catedral que ele tinha visto de súbito parada, esperando a ardência das horas da tarde. Mas o horizonte atrás de si estava bloqueado pela parede lateral dum galpão e mais adiante pelas folhas que se erguiam acima do espaço onde a torre da catedral deveria aparecer visível. Então o professor olhou para frente desapontado e sempre pensando que ele poderia voltar à praça e parar diante do edifício, olhá-lo tão fixamente que seus olhos se cansariam e sua cabeça doeria da atenção concentrada num só ponto da paisagem. Mas era impossível porque as pedras da rua não se moviam sob o sol e rajadas de pó que se acumulavam no ar. Respirou compassadamente para decidi se podia seguir, pois atravessando a rua ele, o homem, ficaria dez passos mais próximo de casa. Não se animou com a perspectiva dessa possibilidade. Permaneceu parado enquanto uma mulher e uma criança seguiam pelo outro lado rua, descendo-a, para chegar diante de um prédio alto e com janelas fechadas. Dentro daquelas caixas retangulares habitavam seres abissais que iluminavam a própria vida com a fosforescência do seu corpo. Mas dentro da catedral não habitava ninguém. A catedral era como um vácuo. Coisas dispostas sobre mesas, altares, pedestais, mas imóveis, esperando ação humana para movê-las e limpar a poeira que se acumula sobre seus olhos, espantar o pó que se estratificava sobre suas faces e incrustava-se entre suas mãos postas e lábios de meio sorriso. Lá em cima da catedral, no teto branco, pairam figuras aladas, mas que o tempo apagará e as mãos humanas farão reviverem com retorques cromáticos de azul e vermelho e amarelo. Na torre é o ninhal das aves do céu que cagam tudo e assustam-se com o balado imprudente do sino. A mãe também havia sido era um ser abaulado onde jazia outro ser que ia nascer. Não era ele quem nasceria do corpo da mãe, porque ele esperava com certa ânsia que estivesse acordado quando olhasse para a nova vida e se dissesse assim – eu te vejo, e você e não me ver ainda e somos os únicos que se contemplam no mundo sem se compreender o mínimo de quem nós somos ou do que seremos daqui para diante. Só quando ele fechou os olhos foi que a imagem da mãe veio-lhe pura e nítida, mas não havia um pai ao lado daquela imagem e isto significava que ele era um homem que sempre fora e seria ainda sozinho no mundo. Ele seria sozinho no mundo porque de repente aquela pessoa que ele via que era sua mãe desaparecia e o pai reduzia-se apenas a uma fugidia impressão de memória que vinha descontínua e branca até as suas retinas. Dentro do ventre da mãe o ser tinha existido, mas ele não o presenciou nunca no mundo. Como uma ideia tão clara se fizera distante e imprecisa a tal ponto de ele dizer-se – foi uma ilusão, eu pensei numa coisa real e ela chegou a existir por um momento, mas depois ela foi se apagando e ficou somente uma incerteza lúcida, algo como a imagem de uma grande ave que passou voando sobre nós, mas que não parou de voar nunca até se perder no horizonte distante onde nenhum esforço para recordá-la visível e táctil pode nos reconduzir à sua presença. Poderia pensar que fora ele quem estivera dentro do corpo abaulado da mãe, que voltara a se proteger naquela casa, que voltara a encolher-se dentro de um ser maior que ele para proteger-se do frio, da tempestade e para não sentir-se outra vez e sempre insaciado de vida.
Logo o professor achou-se tão perto de um rosto que desviou-se para a parede da sorveteria. Era outro homem. E como era outro homem e ele o desconhecia não havia nenhum temor que o abalasse. Mas outra vez a certeza invadiu-o – que não estou sozinho no mundo, outros viventes naufragam no mesmo deserto. Se demonstrasse algum interesse pelo homem ele lhe sorriria e viria o inevitável cumprimento de gratidão. O que ele fez foi impensado, mas decisivo pra não sucumbir àquela tentação voraz. Olhou as janelas fechadas do edifício alto no começo da rua e contou-as com pachorra e gratidão humana. Quatro andares, seis janelas por andar, três blocos de construção, ângulos, pontos, retas. Seguiu alegre para o outro lado da rua, agora decidiu-se permanecer indiferente a tudo. O pai que ele tinha pensado há pouco era apenas um mau retrato pintado que não representava uma ideia exata do que fora um homem que dera vida a outros seres e depois renunciara ao mundo como quem se despede de um desconhecido o convés dum navio sem rota, partindo de um porto numa tarde poeirenta. Pedro Simão continuou descendo a rua, encontrado outros seres visíveis, humanos, veículos, pedras soltas na rua, cães olhando para fora. Havia também as formas das grades que protegiam os jardins das casas. Era neste momento que ele via que aço fundira-se como cópias das ideias que existiam na mente e agora materializadas existiam para além do ideal. Vontade de pensar em cada aspecto do que era visível e conhecer se havia alguma verdade brusca pra ser descoberta dentro daqueles invólucros que limitavam a realidade. Ele se acostumara a falar de coisas infinitas, mas o que o professor sabia é que sobre coisas infinitas não se podia apreender nunca, escapavam, pois comportavam-se como objetos goros, um ovo vazio por exemplo. O infinito era assim, goro, sem contrapeso, insopesável mesmo. Um ovo goro em suma. Ovo goro não era só o infinito que ele não sentia real, mas era também a catedral. Goro se dizia das coisas que não têm vida dentro. Do que podia ter sido, chegou a querer ser, mas desistiu antes. A mãe fora uma dessas caixas goradas, ele próprio testemunhara seu desencanto, depois que ela parou e chorou, foi que ele soube – esta também vai desistir, de modo que estou mesmo sozinho. E deus? – deus era uma resposta muito previsível. Ele falava aos aprendizes – a regressão simples pode; a curva de Laffer diz; com isso concluímos; (Veja-se o quanto ele poderia iludir-se respondendo que deus era.). Esperou que o sinal abrisse e os veículos parassem. Cada ser tinha um tempo e o tempo de deus jazia fossilizado nas sensações humanas. O homem pensava ideias; o homem via seres; o homem escutava sons; o homem tateava no escuro e o homem sentia os odores a sua volta e salivava diante da fome. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. O que mais?
Numa rua já bem antiga da cidade, sua indecisão. Seguir para casa como estabelecera desde o princípio ou adiar o evento? Não se deu tempo para pensar nisto. Adiando-se subiu a rua na direção contrária ao caminho de casa. Não estava pronto para conviver com seus próprios limites. No entanto, e agora? Seguira até ali e não parara em nenhuma margem, nem sucumbira como ele previra-se. Por cima era o céu e por baixo era a terra e ele era um homem que caminhava entre estas duas superfícies instáveis. Viajava em queda livre, se despencava e não chegava a cair nunca. Haveria um espaço onde uma pedra sem asas encontraria o chão e seria acolhida pelos seres planos que se arrastam na areia, que se geram da lama, seres que não têm raízes, que não resistem ao vento, não se dobram e são logo arrastados sem mistério, e de tal forma são levados que se pensa simplesmente – eram fracos, por isso se dobraram, não tinham raízes, por isso se quebraram logo, nunca se nutririam da terra nem teriam o acolhimento da chuva do céu, eram tão finitos que foram esquecidos como aves silenciosas numa gaiola. Olhou a construção encardida e limosa sob a qual se abrigara. Até as casas construídas pelos homens se consumiam na pátina insistente. Nasciam gramíneas nas gretas, vicejavam cactos nas telhas, apodrecia de esquecimento e velhice. Reconduziu-se para frente, continuar subindo a rua. Lá adiante uma igreja. Falso monumento votivo. Mausoléu de deus. Ainda mais adiante uma ponte sobre um rio canalizado. Assim, eles, os humanos, recriavam a natureza dentro da cidade. Flores nas jardineiras, fícus nas calçadas, crótons nos canteiros públicos, heras nos muros, árvores envelhecendo nas praças. A vida artificial e domada neutralizando a paisagem inventada. Pedro Simão também era um cavalo girando no picadeiro.
Quando passava sob o toldo compreendeu que ali não havia perigo e era um abrigo seguro para ele, entrou logo.
Foi recebido pelo hálito nauseante de comida pronta, de cerveja servida, pela súbita atenção que a sua entrada abrupta despertara no restaurante. Logo viriam oferecer-se para servi-lo. Não precisou olhar em volta para encontrar muitas mesas vazias. Decidir-se antes que viessem guiá-lo, sorrir-lhe acolhendo-o. Sentou-se ao fundo, encostado a parede, diante de si as pessoas voltaram a comer. Depôs o embornal sobre uma cadeira vazia, então viu emergir de dentro dele os papéis escritos. Acadêmicos, leituras cacetes. Um título: A teoria de Simosen e a expansão da base monetária no governo Geisel. Pau. Pau. Pau. Desviou-se daquela teia porque não estava ali para pegar moscas. Descuidadamente aspirou o ar do ambiente e deixou-o retido nos pulmões até sufocar-se. Havia os ventiladores elétricos, mas a atmosfera estava pesada e untuosa um pouco acima do chão. Inclinou-se para frente e apoiou os braços sobre o mármore branco da mesa. Sólido como toda matéria, frio como toda pedra. Observou atenciosamente os cristais polidos e a mica incrustada na rocha. Com a ponta do dedo médio traçou dois círculos concêntricos no tampo. Era tempo, pois já vinha vindo o garçom solícito. Olhou-o, reconhecendo-o. Sobrevivia ali. Sem sorrir-lhe o professor pediu uma garrafa, pois não comeria ainda, só trouxesse-lhe uma garrafa de cerveja preta. Quando o homem saiu o professor cruzou as pernas sob a mesa, apoiou os cotovelos no tampo e preparou-se para a plenitude do entediamento. Lá fora o dia era opaco e parado. Pensou vagamente que deveria estar chegando à frente da casa, abrindo a cancela e procurando as chaves no bolso das calças. Descruzou as pernas e estendeu-se na cadeira, esticando-se todo num relaxamento inquieto. Quando o garçom voltou com a garrafa serviu-se logo com o chope e o dispensou em silêncio. Não bebeu logo o líquido, deixou-o espumar diante dele, bolhas de gás estouravam no seu rosto. Onde deus agora – voltava a se perguntar pelo deserto. Obcecara-se pela questão? – não, nunca. O que havia era a necessidade de interpor um pensamento entre si e o vácuo. Se não pudesse nem mesmo pensar nem impor-se ideias ilógicas, ele seria como um morto, inconsciente e imóvel. Bebeu parte do líquido espesso e brumoso, mas não tanto que precisasse esgotá-lo para servir-se mais. Bebeu-o cuidadosamente sentindo-o frio e amargo na boca. De repente ele era um homem parado olhando o caminho. Vagamente imaginava-se descobrindo rastros na terra. Passos que ele seguiria? De quem aqueles rastros? Dele que caminhara em círculos? Mas não eram tão incertos quanto os seus passos. Como ele não se lembrava de nunca não ter sido senão um ser vendado, o professor desconhecia que houvesse seguido qualquer rota linear. Seus voos tinham sido sempre irregulares e trôpegos. Mas não era impossível que fossem rastros muito antigos que ele havia deixado num tempo em que seu caminho não era este, mapas rotos, bússolas não imantadas. Então ouviu a voz – segue-me, vem comigo, sou tua ilimitação. Seguindo a voz preparar-se-ia para um encontro – com quem? O professor não quis pensar no dono da voz. Seguiu a voz por um tempo, mas depois foi recordando-se. O dono da voz só poderia ser um. Parou para escutar. Agora a voz era sólida e ausente. Reconhecendo-a subitamente, pensou que a voz era igual àquela que haviam dito – é a voz do teu pai.
Rememorou-a e sem perder a sensação da voz foi seguindo-a, o pensamento querendo encontrar o dono da voz, querendo pensar que aquele era o caminho. Logo penou que estava sob uma árvore – deus o trouxera até o lugar. Apoiar-se-ia no tronco, olharia para cima e veria os frutos pendentes. Ouviria o vento que passava pelas folhas, ouviria as sementes que crescendo dentro dos frutos. Refletiu no enigma das sementes e dos frutos que abrigavam as sementes. O professor chegou a pensar também nas flores que tinham vindo antes dos frutos e na seiva que alimentava as flores e nas raízes que extraíam a seiva da terra. Ocorreu-lhe também que a terra guardava no seu ventre o alimento das plantas e que era esse alimento que se fazia seiva, flores, frutos e sementes. E havia as folhas nos galhos e as folhas colhiam luz e a luz também conduzia ao fruto, e em tudo isto existia enfim uma predeterminação que incumbia um fruto de crescer e ser alimento, outro de guardar-se para a semente. Tudo já decidido antes e completo, precisando apenas realizar sua natureza prévia e incisiva.
Quando ergueu a cabeça olhou por cima da paisagem e pensou – nenhum desses seres que estão à sombra sob a luz artificial da iluminação branca do ambiente foi limado, burilado por deus, mas agora vive sua completude. Sorriu para sua ideia e bebeu de um sorvo único o líquido negro e transparente do copo. Olhou o recipiente vazio e a partir de então soube que ele e somente ele podia replenar tudo novamente até a borda.
Outra vez o professor sabia que aquilo que revelava-se era um acontecimento sem mistério, uma conclusão vinda do seu arrastar-se imune sob as folhas que caíam e cobriam o solo. Em verdade ele era um desses répteis lisos que viviam sob o húmus e que se alimentava da podridão das folhas mortas. Era escuro e frio onde ele habitava, e ali a umidade cortante obrigava-o a estender-se ao sol para fazer-se poroso, tão poroso que ele não retivesse as ideias somente para si. Sobretudo esta insistência de viver de si. Mas ele olhava em volta e via os homens que viviam todos aquém de si, apenas abafando um bocejo, usando a mesma roupa muito antiga já, pegada ao corpo, acostumando-se a aridez e as distâncias abissais e intranquilas da verdade. Tudo em que ele acreditava desfazia-se entre seus dedos, esfumava-se com o dia, mas ninguém o ouvia, e ele não falaria, pois nunca quisera ser um homem audível que falava coisas que nasciam dele mesmo. O que ele descobria vinha revelando-se aos poucos a si mesmo numa degenerescência bruta e geral que o fazia líquido, um ser solúvel, incolor. Imaginava-se desconstruindo aqueles seres saturados, se revelando para eles – vocês calem a boca, assim como eu sei que não sou um ser completo, vocês também precisam saber que nossa imagem e semelhança é uma mentira escrita. Mas quem preparado para esse total sem mistério do homem? Tudo que era falso e imperfeito é que era a marca humana.
Pedro Simão olhava para o balcão onde ardia uma cristaleira com frutos secos e amêndoas tostadas. Pediu um punhado das amêndoas e quando lhe trouxeram pôs-se a comer as sementes, mas com método. Era um homem, mas era um homem que aceitara a metamorfose, que recusara a condição de larva e se abrira para outra existência. Mas isso ainda era uma crença, pois se ele pensasse – deixei de ser larva, veria a si mesmo gordo e fumegante se alimentando da vida das sementes, se alimentando da carne dos frutos. Por isso via que a metamorfose ainda era uma crença. Também era uma mera crença a sensação de que vira passos no chão e de que seguira uma voz num caminho. Sim, nada disto que ele pensava era certo, nada definitivo. No fundo de tudo, depois que atravessava-se todas as portas encontrava-se apenas a ausência convivendo com a totalidade do vazio. Desespero? Quem sabe? Mas a mesma atitude desesperada era tão inútil quando uma espera constante ao longo da vida. Pensar que havia uma razão superior ordenando o tempo, preenchendo o espaço, sazonando os frutos, elevando a semente do seio da terra, podia funcionar por dentro da gente, mas de repente vinha a descoberta e o súbito silêncio anunciava-se, impondo o vácuo e o indecente abandono do filho caído. Sem dúvida ele não seria um bom jardineiro. Lançaria as sementes nas rochas, deixaria-as expostas aos pássaros.. Ainda lançaria o trigo fora e se alimentaria do joio. E deus? Ouviu um riso tolo e largo na mesa ao lado, olhou-o. Era uma mulher feliz. Estava feliz com um rapaz vestido de colegial, era um menino atento, pois a mulher era sua mãe e estava muito evidente que eles se amavam. Mas o rapaz era série e não sorria, olhava-a simplesmente compreendendo-a porque aquela era a sua mãe e ele precisava amá-la.
Quando o professor percebeu que seu olhar se encontraria com o do menino desviou-o para fora. Lá fora era a rua. Lá fora havia o dia claro, e era meio dia. Uma loja parara de vender, mas a lojista continuava na porta, a espreita. Lá fora deus caminhava como um ser inútil e aniquilado pela compreensão que os homens agora tinham sobre a felicidade terrena – o que eu penso é que deus é servido à la carte, servido aos leões nas jaulas iluminadas. Veio um bafo quente e o professor voltou-se para uma mosca que voava no ambiente. A mosca não tinha pousado ainda, mas procurava desesperadamente uma zona de sombra onde pudesse repousar de ser. Mas o professor era um cego, não tinha mil olhos como os insetos, o que ele via era um mundo que acolhia o homem, mas essa acolhida era brutal e voraz. Está visível, mesmo com asas não significava que se pudesse escapar do deserto e viver de si mesmo. Poderia alguma vez olhar para o espelho ou um retrato de si mesmo e se reconhecer na superfície que o refletia? Nenhuma evidência da sua alma. Encheu o copo de toda a cerveja que havia. A mosca já não era uma presença. Lá fora a hora terceira chegava e o filho de deus morria escarnecido e livre. Fenômenos celestes revelariam que haviam matado o filho de deus e que posteriormente se acreditaria na sua ressurreição. Aos domingos os leões entrariam no mausoléu de deus e comeriam sua carne sanguinolenta num perfeito ritual. Depois do ritual pensariam – comemos deus, agora somos deus, urinemos nos atributos desse deus, sejamos libertos como um deus. Caminharemos no deserto, acharemos o cadáver desse deus putrefato, juntaremos os ossos dos seus anjos e das suas legiões. Chegariam umas mulheres místicas e diriam – eu vi deus, ele está vivo. As mulheres e os místicos veem coisas. O professor não acredita nas mulheres e nos místicos. A mulher que sorriu antes se levanta, o rapaz olha o professor, o professor não o olha, pois as lágrimas descem-lhe na face. O homem chegou diante do caminho, vai prosseguir, estará sozinho, abandonando como um animal e livre como uma folha que cai.