quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

CONTO - PAI CONTRA FILHO

 Pai contra filho

 


  

         Porque era domingo ele pensou que não havia problema em ficar mais um pouco na cama mesmo que não estivesse dormindo e apenas pudesse permanecer em silêncio ouvindo a respiração sufocada de sono da mulher sob os lençóis. Portanto recusou-se a abrir os olhos supondo para si que se não os abrisse e visse a claridade que avançava voltaria a pensar que tinha dormido um tempo mais, mesmo depois de haver estado certo de que ele agora já acordara e que teria “um dia todo” para viver. Contudo não se mostrou impressionável com a certeza de que apenas jazeria sobre a cama pensando franjas de sonhos e memórias cadentes. Voltou-se para a parede afastando-se bem para as extremidades da beirada da cama, suspendeu logo a respiração para aparentar tranquilidade e imperturbabilidade numa manhã que já começava absolutamente pertencendo-lhe. Foi então que pensou que de repente o que tinha acontecido é que ele se tinha esquecido de si deitado sobre o leito, que se tinha evolado no ar e era uma grande nuvem escura sobrevoando o espaço iluminado por uma estrela fixa. Compreendeu também que adormecera por um tempo razoável, mas quando voltou a acordar percebeu que as horas não se tinham passado e que ele apenas estava exigindo-se sem aparente necessidade.

         Rojou os lençóis para o lado da mulher e pôs-se sentado na beira da cama. Ouviu que ela resfolegava e que só depois que ele não estivesse mais no quarto é que a mulher regressaria do sono, sono sem sonhos, estéril. Assim ele caminhou até o banheiro onde fez a barba e as abluções para só depois sair pela casa. Quando acabou de se lavar e vestir-se com a roupa que ele se concedia usar no domingo quando estava sempre em casa, o homem saiu do quarto e fechou cuidadosamente a porta atrás de si. Mas não caminhou logo nem para a sala nem para o corredor, parou no hall e voltou-se para a janela donde o sol vazava pra dentro da casa. Ficou assim, relembrando o que se havia preparado para viver naquele dia, e eram coisas que tinha de fazer sem se ocupar muito detidamente nelas para poder fazer tudo e ainda descansar na maior parte da tarde. Só quando descobriu qual a primeira coisa por onde precisava começar, pôs-se a caminhar na direção do corredor, mas subitamente quando entrou neste vão da casa deparou-se com o filho que vinha vindo em sentido oposto. Não avançou mais e parou diante dele impressionado de encontrá-lo caminhando pela casa assim com a manhã apenas nascendo.

         E de repente os dois estavam parados no corredor aguardando-se hostilmente e impondo-se a si a impossibilidade de deixar o caminho para que o outro seguisse. E enfim ele soube que era o pai daquele homem de olhos secos e baços. Por que nunca compreendera que o menino já era muito antigo e que nem existia mais, que não havia mais aquele serzinho de formas simples, de pés aplainados na terra, que caminhava inseguro e que exigia a prodigalidade do amor? Nunca ele cresse que um dia olharia em volta e se depararia com um homem tão feito quanto ele caminhando pela casa, um homem que ele mesmo fizera da sua própria matéria insubstancial. No entanto se previsse haver no menino a tendência a vir fazendo-se um homem era improvável qualquer interferência sua para negar a um homem, o que agora era seu filho, o abandono do menino, da essência pueril em que aprenderam a amá-lo e conquistar essa vitória imperativa a todo humano, fazer-se um homem, um ser que é ao mesmo tempo obtuso e horizontal. Pois agora tinha diante de si uma pessoa que ele nunca vira, uma pessoa cuja ausência sempre fora aquiescida sem que jamais se pudesse pensar nela como presença solicitada.

         Como o filho o olhava temerário e Elias, o pai, não tinha nenhuma pergunta pronta ou antecedente que pudesse fazer-lhe para esclarecer-se, não se tinha previsto a possibilidade do encontro e agora estava emparedado no impasse, mas veio o cão que vinha do quintal e ele recuou até a parede e sentiu o frio dos tijolos perpassar-lhe, então o caminho ficou livre e ele olhou-se na sombra da luz rala que flutuava no ambiente e aí o filho que também não tinha preparado nenhuma resposta já seguia a passos para o quarto. Só depois de ouvi-lo abrir e fechar a porta, Elias voltou a retomar o caminho. Não se foi logo, pois pensou também que poderia voltar para o seu quarto e deitar-se na cama onde a mulher ainda jazia reconfortada pelo sono e a tepidez dos lençóis. No entanto preveniu-se rápido da desnecessidade daquilo tudo, pois fechara a porta e já agora com a casa toda aberta e o cão livre, tinha certeza de que este deitara-se no umbral guardando-a. Não tinha que resolver-se a nada nem mesmo temer-se, seguiria para o quintal onde daria providências às primeiras coisas que precisava fazer naquele dia.

 


 

         Caminhou para o quintal muito firme e seguro, atravessou toda a casa com uma resolução ainda que tarda muito aceitável. O sol já aquecia e agitava os odores presos no ar da casa, ele os sentiu chocar-se com os seus sentidos quando chegou ao limiar da cozinha. Mas não se deteve ali, continuou até sair pela porta e receber sem susto a limpidez da luz do sol que queimou-lhe a retina ainda não completamente firme para suportar a intensidade do dia luminoso que caía sobre o domingo. Parou na soleira da porta para contemplar todo o quintal antes de decidir-se pra onde caminharia primeiro, seguindo em frente chegaria sempre ao pé do muro e jardinaria ou teria que voltar ao ponto donde começara a caminhar, por isso contentou-se em olhar por cima do muro e ver as copas das árvores muito altas nos outros quintais que se projetavam para o céu e recobertas da luz solar. Quando foi concentrando sua atenção perto a paisagem que estava diante dele, ele já a conhecia, então o homem observou também o seu quintal e as camadas de sol sobre as coisas que guardava encostadas num canto do ângulo da parede da casa com o muro. Mas havia também um loureiro esguio e arbustivo que havia posto para ali e que fosforescia ardendo na sua tranquilidade verde e iluminada.

         Concluiu assim que sua primeira ação seria tomar o podão e aparar as pontas dos ramos do loureiro para que prevalecesse nele a ordem das plantas cultivadas numa jardineira. Desceu então o batente da calçada e seguiu para o meio do quintal, viu logo que precisava limpar as caganitas dos passarinhos no viveiro, abastecer os comedouros e renovar a água. Deparou-se também com a cagada fumegante do cão onde estivera preso toda a noite, mas nem assim compreendeu como se havia libertado o animal para ficar solto pela casa. Mas se ele continuasse indeciso por onde principiar como estava fazendo agora, não alcaçaria realizar nada daquilo que estabelecera necessário para aquele dia. Pra poder refletir um pouco e pôr-se em ordem foi até o loureiro e estendendo a mão colheu uma folha aleatória e comeu-lhe a ponta, sentiu então o súbito gosto de clorofila e sua língua ficou pesada e saburrosa. Só então teve a ideia de dar a volta na planta que se tinha extraviado para o seu quintal. Na primeira volta deparou-se com a urina do filho nas folhas mais baixas do arbusto. Mas será possível? Gotículas de mijo caíam das folhas e empapavam a terra. E aquele era um novo marco que vinha obrigá-lo a um reposicionamento geral. Era muito impróprio continuar observando aquilo e se perguntando sobre aquilo, o tempo em que ele educava ao filho onde urinar e não estar pela casa deixando-a toda mijada não existia mais e de acordo com o código não estava autorizado a fazer qualquer observação sobre os novíssimos hábitos urinários daquele homem feito.

         Contudo não se perturbou muito com isto, não era bem um hábito do filho e acreditava apenas que ele se desapertara atrás da planta. Mas de onde viria ele tão cedo? Observou as marcas na areia do quintal. Os rastros do filho levaram o pai ao pé do muro e ali se via que o rapaz tinha saltado a parede para dentro, portanto intrigou-se um pouco com aqueles canteiros de alecrim e hortelã machucados, com os galhos das magnólias pisados, macerados pelos pés do filho. Se o filho saltara para dentro do muro é que alguma vez estivera lá fora, mas pra quê? Na verdade ele já sabia que o filho ardia de necessidades humanas, mas isto não o autorizava a saltar muros e voltar para dentro como um ladrão. Evidentemente que guardaria para si aquele mistério candente, olharia mais tarde o filho na mesa do café e não lhe aparentaria que ele já sabia de quase tudo, ficasse o filho despreocupado, pois dele jamais se adivinharia qualquer coisa e muito menos se teria alguma certeza de algo. Procurou então ver por cima do muro, mas mesmo esticando-se muito não chegou a nada, senão a esmagar muito descuidadamente os canteiros da murta. E se ele subisse pelo muro não poderia descobrir? Não faria essa coisa a qual depois quando ele pensasse nela não se consolaria por tê-la feito. Não era ousado, por isso reduzira-se a um trabalho de martírio, era apenas um notário que servia pessoas que o solicitavam para demandar, para pedir que ele providenciasse um meio oficial de reconhecimento de patrimônio.

         Assim não teve dúvidas quando achou melhor desistir e voltar para limpar o viveiro dos pássaros que era urgente, pois a sujeira que faziam os exasperava nos seus ninhais. Quando chegou ao pé do loureiro foi que a viu sobre a cumeeira da casa, era a gata empoleirada requestando-se na manhã oblíqua e recebia sobre seu pelo tigrado toda luminescência matinal que se estratificava sobre o domingo. A gata eram dois olhos abertos e brilhantes que o via lá do alto propondo-lhe algum segredo, mas ao qual ele não alcançava revelação. Como conseguir não tremer diante daquele ser verdadeiro e preciso que lhe encimava o telhado? Ela era um animal imóvel que aguardava sua decifração e o homem se atormentava por não tê-lo previsto. Havia risco para sua criação de pássaros, um gato é sempre um torturador a espreita, nunca se alimenta da carne que abate, mas apenas da dor que promove. Que ele precisava por enxotá-la antes de descer o viveiro de pássaros para tomar sol no quintal. Que ele precisava por o bicho em fuga. Procurou um pedregulho, mas romperia o telhado se o lançasse, assim apenas apanhou um punhado de areia e lançou sobre as telhas, mas não houve nenhum abalo no animal que continuou posicionado como antes sempre estivera. Irritou-o aquela indiferença felina, aquela insistência irracional, ia tomar mais um punhado de areia, mas subitamente viu cruzar diante dele outro ser mais premonitório e que impôs-lhe atenção plena para si. E era logo um pássaro, uma ave cinza e cega que veio sem ver a parede da cozinha e lançou-se sobre ela.

         Ficou um pouco surpreendido com o desastre, principalmente porque não era hábito das aves fazerem rasantes no seu quintal, principalmente não era comum que viessem aves sem rumo e batesse contra a parede caindo em pleno voo. Quando viu que o pássaro se debatia no chão que se estertorava todo procurando apanhar um último alento de sua vidinha de voos, insetos, sementes, cantos e ovos postos nos ninhos dos galhos mais altos, ele chegou até ela e a recolheu para vê-la morrer nas suas mãos. Mas era mesmo uma ave cega. Tinha um olho apostemado e outro vazado. Sem dúvida havia ação divina naquele fato. Se a ave tinha vindo do céu, perdera a visão lá nas suas viagens pelas nuvens. E tudo aquilo era uma um acúmulo de mistérios diante dele, era um acúmulo de prodígios que se iam avolumando a medida que o dia avançava com ele dentro. Que significavam toda aquela totalidade de augúrios?

         Como ele não era um homem para ficar pensando em coisas que não se revelavam logo e como o pássaro ainda estava quente do voo nas suas mãos, ele pensou que poderia atirá-lo sobre o telhado e assistir a reação da gata ou lançá-lo através do muro na rua oposta que passava nos fundos da casa. Como escolher agora? Ainda podia cavar um buraco no canteiro e enterrar o pobre cadáver cego entre as magnólias e as losnas. Sim – então ele pensou que era melhor enterrar a ave morta. Pegou a pazinha de jardinagem e voltou ao canteiro das plantas ao pé do muro, mas quando se pôs a cavar ali, ouviu lá dentro da casa a voz estentórea do filho que falava já à mãe acordada e que preparava-lhe o café-da-manhã. Então não teve mais nenhuma dúvida lançou a ave morta sobre o muro e ficou parado até ouvir quando ela caiu com um baque fofo e rejubilante nas pedras do calçamento na rua dos fundos da casa.