sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

POESIA- O ENGENHO TUPINAMBÁ

 

O ENGENHO TUPINAMBÁ

 

Comeu muitos homens,

Urdiu pardo açúcar.

Comeu muita cana,

Semeou muitos ventres.

Cinzelou bacharéis,

Lavrou comendadores,

Casou tantas sinhás

Batizou tantos nhonhôs.

 

Veio sobre ti à usina,

Hilo, diesel, turbinas.

O preço do açúcar na bolsa.

Vieram sobre ti hipotecas,

Disputas de herdeiros,

Execução no banco.

Vieram sobre ti promissórias,

Bolor, ferrugem avara.


 

Agora descansas –

Repousam tuas paredes,

Teus tachos partidos.

Repousa teu forno,

Tua fuligem já antiga.

Repousa o canavial,

A moenda, a terra,

Mas o cassaco ainda insone.


 

 

CRÔNICA - AS DOIDAS

 

As doidas

         Quinco Chaves entrou pela porteira da propriedade e seguiu para o alpendre da casa. Trouxe com ele Nonô e Tobias os dois outros trabalhadores que vinham se alugar também, pois o tio de André precisava que reparassem as cercas estouradas e a casa da propriedade antes que começasse a chover e os trabalhos ficassem restritos à lavoura.


         Quinco Chaves subiu os degraus do alpendre. Os outros pararam no terreiro, encostaram as ferramentas na parede do armazém e esperaram sob a figueira.

         O proprietário levantou-se da espreguiçadeira e caminhou para o capataz porque Quinco Chaves gostava de ser tratado com deferência apesar de ter sido o tio de André quem o chamara para resolver com ele o acerto pelo trabalho. Cumprimentou-o, convidou ele para sentar-se, mas Quinco não respondeu e continuou de pé na entrada esperando que ele começasse. O tio de André precisava dizer a Quinco Chaves que as cercas tinham estourado e havia também muitas estacas que tinham de ser substituídas antes que ele precisasse soltar o gado na mata para plantar no brejo. E também como as chuvas chegariam e a mulher tinha medo das cobras que vinham para perto das casas com o mato crescido e já denso no oitão, ele precisava que os homens limpassem aquele mato e expulsassem as cobras do terreiro.

         Só então o tio de André pensou que a mulher sempre encontrava um trabalho que deveria ser feito na propriedade e que ele nunca podia parar e respirar nem na hora do calor quando a tarde era tão quente e o vento que soprava era áspero e agressivo. Olhou para os homens parados sob a figueira eles também esperavam que ele fosse o primeiro que falasse.

         Naturalmente ele combinou as ideias e procurou as palavras porque falaria para Quinco Chaves seu preço e ele sabia que o capataz não se alugaria nem a seus homens por um salário que não quisessem receber pelo trabalho que eles dissessem – é justo. O tio de André salivou e pensou em cuspir no assoalho, mas ele também sabia que Quinco Chaves não se sentiria respeitado com um gesto desses de um proprietário. Então antes de falar engoliu a saliva e olhou o homem escuro que ele tinha diante de si esperando que ele começasse a falar para compreender porque o tinham chamado ali.

         ___ É que já chegou o tempo de cuidar das cercas – o tio de André disse.

         Quinco Chaves apoiou-se numa perna e esperou mais. Lá no terreiro os dois homens tinham se encostado no tronco nodoso da figueira. Eram Nonô e Tobias e um deles era o genro e o outro era o filho de Quinco. O proprietário esperou que o capataz falasse, mas o homem só esperava. Assim ele afastou de si uma mosca imaginária antes de continuar explicando.

         ___ Soltaremos o gado, plantaremos no brejo, as cobras estão quase entrando na sala e dormindo nos quartos, temos tantas goteiras que não precisamos da bica, o reboco está solto, vejo as varas. Eis aí o problema.

         ___ Faremos o serviço – Quinco disse.

         O tio de André olhou-o com força antes de propor o preço, tinha certeza de que o homem não se renderia ao salário que ele estava pensando que era o que podia pagar naquele ano. Não se informara muito, mas já sabia que os outros proprietários estavam pagando mais pelo aluguel deles. Mesmo assim ele tinha que falar o preço, pois já tinha chamado o capataz, já tinha explicado o que precisava e não pararia antes de saber de Quinco Chaves como ficaria o serviço naquele ano.

         ___ Empeleito você e os homens, mas não posso mais do que pude no ano passado – o tio de André falou – as filhas doentes, Dona Neném você sabe. Caruncho no milho e bicudo no algodão.

         ___ Seu preço major – perguntou Quinco Chaves.

         ___ Meu preço seu Quinco – ele disse.

         ___ Não aceitamos – Quinco falou.

         ___ Compreenda seu Quinco – desviou o olhar do capataz – eu até posso liberar pra você usar a terra sem renda.

         ___ Não pago renda major – disse Quinco.

         ___ Entendo. Mas um ano como este...

         ___ Igual aos outros – Quinco perguntou.

         O tio de André deu um passo atrás e olhou as paredes gretadas do alpendre. Ali dentro das gretas se escondia uma aranha peluda de olhos verdes olhando-o de dentro do escuro. Apalpou-se procurando o fumo para ter com que ocupar-se antes que achasse as palavras com as quais apelaria ao capataz.

         ___ É quanto posso pagar seu Quinco. E não posso mais do que pude no ano passado.

         ___ Esse é o seu preço major?

         ___ Não tenho outro. Vá entendendo.

         ___ Entendo. Entendo. Entendo.

         Consternado o proprietário olhou o homem. Quinco Chaves estava plácido e na sua cara preta não se movia um músculo. O tio de André cruzou as mãos atrás das costas e só então continuou falando:

         ___ Portanto o senhor não aceita o serviço – ele perguntou para Quinco Chaves.

         ___ Poderia aceitar – Quinco Chaves perguntou.

         ___ Entenda – o proprietário disse.

         ___ Já disse que entendo major – Quinco Chaves falou.

         ___ Mas não aceita – o tio de André falou.

         ___ Não aceito não – Quinco Chaves disse.

         ___ Como fico seu Quinco – o tio de André perguntou.

         ___ Ofereça outro preço.

         ___ Não posso. Eu já falei. Não posso seu Quinco.

         ___ Os outros proprietários estão pagando – Quinco disse.

         ___ Não sou um desses proprietários.

         ___ Não se melindre major.

         ___ Não me chame de major seu Quinco.

         ___ O major é que não quer entender que o preço que pedimos não é injusto.

          ___ Já disse que não sou major e se não pode receber o salário que recebeu no ano passado não quero seu serviço na propriedade.

         ___ O serviço é seu, major.

         ___ Leve seus homens, leve suas ferramentas seu Quinco. Não temos acordo.

         O tio de André deu as costas para o capataz e foi entrando em casa. Quinco Chaves desceu os degraus, tomou as ferramentas e seguiu com seus homens para fora da propriedade. Quinco Chaves caminhava pela estrada pensando como o major gostava das demandas.

         O tio de André entrou em casa batendo a porta da entrada e acordou a mulher que dormia a sesta no quarto. Parou no corredor da casa e ouviu uma vespa zumbindo no buraco do reboco. Caminhou até o quarto contiguo ao da mulher e deitou-se na rede.

         ___ Você não dormiu Cazuza – a mulher perguntou. Estava no quarto ao lado e sua voz chegava por cima da meia parede.

         ___ Não pude mesmo, tive um desentendimento com seu Quinco Chaves.

         ___ Espero que possa perdoá-lo Cazuza.

         ___  ...

         ___ Lembre-se querido, antes que comecem as chuvas vamos chamá-lo para os serviços. Há algumas noites que eu já escuto eles caminhando no telhado. Começaram andando atrás da casa. Rezei, mas eles não pararam. Passei muitas noites ouvindo eles caminhando em volta da casa. Gargalharem no terreiro da frente. Depois subiram pelas paredes e já faz duas noites que eles correm sobre as telhas. Probrezinha da Selminha. Está desarvorada.


         O marido ouviu calado. Estava sentado na rede e pensava para quem era que a mulher rezava tanto, pois nunca tinha conseguido salvar as filhas. As filhas todas possessas e a casa tomada. Uma Legião dormindo sob o leito delas. E agora aquela coitada da Selminha.

         ___ Cazuza – a mulher chamou-o do outro lado da parede. Como ele não respondeu ela gritou – Cazuza!

         ___ Pronto – respondeu o marido.

         ___ Como ficaram as coisas entre você e Quinco Chaves.

         ___ Não muito boas.

         ___ Ele pediu mais dinheiro para se alugar?

         ___ Não. Mas parece que eu deveria ter oferecido mais.

         ___ Cazuza, você deveria ter pensado que mais cedo ou mais tarde precisaremos deste homem. Logo teremos outra louca em casa. Vai ser imprescindível mais uma cela no quintal.

         ___ Bem, seu Quinco me deve muito pelo arrendamento das terras onde ele planta. Logo ele vai pensar nisto e aceita o que eu quero lhe pagar.

         A mulher ficou calada. O tio de André levantou-se da rede, caminhou até a prateleira e pegou o samburá. Tomou linha, chumbada e anzóis. Sentado na rede aprestava-se para ir pescar no rio. Preparou um chinu, mas também um maruseigo. Prendeu a linha nas taquaras que ele guardava atrás do armário e pensou olhando para fora pela janela que estava aberta que como o sol agora quebrava, logo seria fim de tarde e os peixes sairiam das locas para pastar o capim na margem do rio.

         ___ Querido quando puder mande chamar Quinco Chaves, ele também precisa de nós, não é a mulher dele que vai ter outro filho?

         ___ Não – disse o tio de André.

         ___ Pensei que por esses meses eles teriam um filho – a mulher disse.

         O marido levantou-se da rede, guardou o samburá com as coisas dele e tomou as taquaras.

         ___ Você vai sair Cazuza – a mulher perguntou.

         ___ Vou dar uma volta no bananal – respondeu o marido.

         ___ Diga pra André que preciso que ele me ajude com Silene, hoje vamos banhá-la, sim?

         O tio de André saiu pela porta da cozinha e caminhou para o rio pela vereda do poço. Quando passou atrás da cela de Silene sentiu o fedor de mijo e bosta que a doida tinha esfregado nas paredes. Três filhas doidas na família. A mulher acreditando nas rezas e nos santos. Silene. Mocinha. Selminha. Castigo. Vagamente pensou nas premonições da avó quando ele disse – caso com Dona Neném, minha prima.

         Terminou de descer a vereda e encontrou André sentado na grama atrás do poço. Tinha armado o visgo e estava ansioso pelos coleiros que vinham beber água.

         ___ Sua tia precisa de você. Hoje banha-se Silene – disse o tio.

         ___ Vou pescar com o senhor – disse André.

         O tio olhou-o e depois disse:

         ___ Está bem. Pegue uns gafanhotos negros.

         ___ Sei onde tem uns lambaris enormes tio.

         ___ Muito bem. Vamos logo.


 


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

POEMA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE NO PURGATÓRIO

 

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE NO PURGATÓRIO

I

A tarde fecha-se nas faces tisnadas dos operários,

Dos comerciários, dos estudantes, dos vendedores,

Empregadinhas que trabalham a dias,

Professores, motoristas, o menino engraxate.

Meu Deus! estão cansados, estão, sobretudo cansados,

E anseiam a lua, mas a lua é quarto minguante,

E anseiam a noite, mas a noite será sem cinema,

A noite será sem albumina, sem o amor que consola.

A noite virá como uma lápide e pesará sobre os corpos.

E os homens que voltam para casa não são os homens que se irmanam,

Não são os homens que canalizam os rios, que drenam os pântanos,

Os homens que erguem arranha-céus, que fundam liturgias,

Nem os homens que voaram para a lua, que colonizaram a lua,

Esses que voltam para casa não construíram as pirâmides milenárias,

Não impuseram ao Cristo sua cruz.

Estes são os homens cuja foice totalitária cevou todo sonho,

Estes são os homens cuja águia hiperbórea esbulha sempre,

Estes são os homens que segam nuvens, que segam o vento.

 

II

Na lama, na imundície humílima,

Cresce, vem do imo da terra,

Flor sem raiz, lírio timorato.

Rasga, fende o asfalto, revela-se,

Cresce em sigilo entre as gretas do chão

E o recanto guardado da calçada,

Mãos não o colhe, todas as mãos estão vazias,

Nunca será feixe de lírios,

Será apenas uma flor, vaga,

Crescerá, viverá até um dia,

Depois morrerá e secarão as pétalas,

Será pó, desaparecerá. Depois

Dirá um – naquele meio-fio da rodovia nasceu uma flor

Depois essa flor cresceu e morreu

Mas no subsolo uterino ainda se conservam seus bulbos.

 

III

 

Os homens cansados, a flor timorata, o livro já muito antigo,

Revelam os pensamentos de um morto,

De alguém que veio de Minas, que faiscou ouro nas lavras

Da Rua Joaquim Nabuco, 81,

Que só achando pirita se disse -

“Joeirarei o ferro em Ipanema”.

 

 

IV

O morto és tu Carlos.

Tira os óculos,

Sopesa os grânulos,

Pensa o poema,

Pseudomorfose,

Silencia a palavra

Fecha-a nos dicionários.

 

Começa a chover lá fora,

A água desce nas ruas,

Lima as pedras, lima a dor,

Vêm de longe um grito,

Munch? Maiakovski?

O homem que cai?

Ataque de tigre?

Tigre. Tigre. Tigre.

Setembro na capital da república.

Quando será amanhã?

 

Virá uma sombra e será noite,

Tudo isto acontecerá quando acabar à tarde,

Quando os homens descobrirem o relógio parado,

Quando se fizer silêncio

E lá na madrugada espessa e sem lume

Começar a se ouvir ainda não audível

Um canto.

Teu espírito sem volume e sem forma,

Uma névoa, uma inscrição ígnea no beco.