sábado, 3 de outubro de 2020

CRÔNICA- PELE DE ASNO

 

Pele de asno

         Lá estava a mulher. Olhou-a sufocado na sua dor. Pela primeira vez morta. Ele podia acreditar? Impossível que houvesse tanta injustiça no céu. Impossível que até mesmo Deus fosse um velho surdo que não ouviu quando ele disse – então poupe Teresa, onde melhor pessoa? Dessas que foi feita uma vez e nunca mais outra. Boa. Boa não. A pessoa que mais envergonhava a gente porque o que somos nós? Uns porcos, uns canalhas. E ela? Uma santa! Santa, santa, santa. Aí vem um câncer e ajuda a cagar na crença? Tinha que morrer comida por dentro, toda podre, acabada, o cancro devorando, apostemando, não deixando carne, matando lento, pra quê?

         Teresa morta, Bento cumpriria a promessa. Ah isso era com ele. Que viesse o Dário com aquela coisa de – se case outra vez mano Bento, Teresa quis foi isso. – Não quis porque não foi ele quem ouviu e quem estava com a mulher quando ela morreu. E morreu como uma santa. E casou virgem, quem sabia disso? Ele sabia. Podia dizer – casei ainda com uma virgem. Teresa não tinha nunca. Ele seu primeiro homem, ele seu único. Nunca que demonstrou interesse na cama, com ela era ele quem vinha primeiro. Amava-a e ela em silêncio. No escuro completo. Banho sempre sozinha. Nunca a viu mais do que como sua mulher. Boa pra tudo. Por isso prometeu ostensivamente:

         __ Não me caso nunca Teresa. Encontrar outra de você? Não que não é possível. Só você que é tão, é pode pensar numa coisa dessas. Prometer eu posso, promessa faço, mas cumprir nunca que vá. Você insubstituível. Depois de você nenhuma outra digna. Mas querendo assim, vou lhe garantindo que só me caso se outra assim como você diz – igualzinha a você.

         Bento que nunca transigiu na promessa que fez a mulher no seu leito de morte, manteve-a, mesmo quando depois que Teresa morreu ele viu que a dor mais forte ia passando, mas tinha também a filha que ele precisava cuidar. O que mais Teresa querendo? Ele que nunca pusesse madrasta para a Lili. O que fizesse era coisa da natureza e podia fazer sem implicar a menina e bem por longe de casa. A Lili era o que lhe tinha ficado da mulher, melhor que ouro. Não se põe o que se tem de mais precioso fora. Ele era o pai e pra Lili era ele quem bastava. E que não lhe viesse o Dário com isto de a Lili precisa de uma mãe ó Bento! – Mãe ela só teve uma e agora só tem pai. Cuidasse o Dário lá da sirigaita que o ornava coroando-o com a galhada do zebu.

         A Lili é o fruto daquela árvore. Fruto da flor. A flor morreu, mas ficou num fruto louro. Pra menina tudo que ele puder. Transigir com a promessa de Teresa ele nunca. Então esquece logo o que dizem no botequim – mas se case logo homem, um pai não é mesma coisa pra uma filha, a mãe sempre é uma mulher. Que tinha isso? Então um pai não podia conhecer o que necessário pra uma filha? O que diziam e ele precisava ouvir era que uma filha em casa tem demandas que nenhum pai pode compreender. Logo a menina crescia, apareciam coisas que só as mulheres é que sabiam entre si e como faria nesse ponto?

         Mas aí tinha a promessa pra Teresa, podia desertar do que ela lhe propôs? Bem verdade é que a mulher morrera sem proibi-lo de se casar outra vez e ele é que se adiantara nas palavras dela e fizera aquela jura de que não me caso nunca Teresa. Mas não era isso o que a moribunda lhe propunha, o que disse claro é que se Bento casasse não fosse ele doido de não escolher uma bem semelhante a ela. Disse semelhante ou igual? Disse igual e isto foi o que ela falou e depois morreu.

         Então se propôs – se existe uma tão igual à Teresa, mano Dário então traga que eu caso. Espalhe que o viúvo se casa com uma que souber ser Teresa. Tem nada, nenhuma. Depois daquela, outra nunquinha. E, com efeito, nenhuma ouve que fosse Teresa. Muito impossível que acontecesse isto de aparecer uma mulher que existisse como uma imagem exata daquela santa. O que fez com que no botequim voltassem à carga contra o Bento.

         __ Homem não exija tudo isso. Teresa era o que você diz sempre – santa, era santa, toda santa – mas se acabou, desça mais e conceda. Conceder? Como conceder? Não há o que conceder. Quem quisesse que se adequasse ao modelo. Era sua palavra de aço, sua resolução imutável. Casar, sim casaria, mas não havia de ser com qualquer.

         Como nenhuma que lhe apareceu, que lhe apresentaram, que lhe trouxeram tinha os requisitos de Teresa, se cumpriria mesmo a promessa. Então Lili cresceu e ele viu que quem tinha falado – você é um pai e tem uma filha é um problema, se case – tinha errado tudo.

         Lili que nunca precisou saber das coisas que só as mulheres sabiam entre si. O que foi necessário à natureza revelou-lhe e ela soube instintivamente. Veja como são as coisas. E a menina botou-se numa mulher que era escritinho Teresa.

         No começo Bento só pensou – puxou a mãe – e era mesmo parecida, uma outra Teresa. Mas no princípio Bento não chegou a concluir que a filha estivesse repetindo a mãe. Tinha os olhos, tinha os cabelos, tinha a cor. Coisas que os filhos gostam de imitar dos pais. Mas então foi acontecendo que o corpo de Lili engrossou. E logo que engrossou e vieram às formas, e a feminilidade se impôs, quem que ressurgiu na filha?

         Teresa. Aquela Teresa mesmo que tinha morrido. Era esse mesmo o plano dela. Morrer daquele jeito, para voltar aos poucos renascida e lépida no corpo da Lili. Mas isto era um fato que carecia de alguma coerência, pois quando Teresa morreu nem era velha nem feia. Se amesquinhara tanto só pra reviver numa outra mulher?

         De volta do açougue Bento pensou – afinal ela é filha de Teresa e é da mesma fôrma, cozinhou-a o mesmo barro, vejo que era desta de quem me falava Teresa. É com a Lili que serei feliz para sempre. Informo ao Dário – não venha mais com nenhuma, já tenho o que é preciso, mas guardo segredo. Agora vinha o problema: como não deixar a Lili nas mãos do lobo?

         Contra o lobo ele tinha armas. Presentinhos pra Lili. Boa menina. Veio-lhe com um vestidinho. Vaidosa, deslumbrou-a com a peça. Amarelo da cor do sol. Vestidinho de verão, saia, cintura alta, parte do peito bem grossa, usava sem sutiã, ele é maravilhoso. Depois do açougue, Bento no botequim. Beber muito não é com ele. Um traguinho, dois traguinho. Uma cerveja e depois, casa. Ele nunca um bêbedo. Valia a pena aturdir-se? Tinha controle. Antes da Maria sair do serviço ele já com a Lili. Tempo pro lobo agir não deixava.

         __ Vai em paz Maria, a Lili no quarto? Com uma amiga... sozinha... já jantou? Não quis? ... Ah! só um copo de leite... é parece passarinho quase não come Maria. Mas é ver a mãe... Tu se lembra Maria?... Lembra né?...mesmo igualzinha... ver Teresa num espelho, numa fotografia...nunca vi duas tão iguais...pois vai indo Maria, eu assumo daqui.

         Sem concessões ao lobo. O que trouxe para Lili? Lindo vestidinho azul plissado. Natural que ela gostasse. Feito pra ela. Veste pro pai ver ó Lili. Vestiu. Uma camélia. Agora gosto de sangue no canino. A Lili feita mulher. E agora? Prevenir a Maria – Olha Mariinha cuidadinho com a Lili, veja se não ficam por aí botando olho na menina. Muito bode solto, eu o dono da flor lá ocupado no açougue naturalmente não posso com tantos. Minha vista curta, turbada pelo trabalho. Você meus olhos, você meus ouvidos Maria, depois eu acrescento seu ordenado.

         Nunca mais nenhum tempo no botequim – O Bento que foi? Do açougue pra casa. Nenhum traguinho mais, e o bacará? E as tacadas na sinuca? O homem sem vícios. Então um viúvo honesto. O último homem que nunca esqueceu a mulher morta. Provável que esteja guardando novilha. Medo do lobo. Dormindo na porta ver quando chega o perigo e evita a tosquia da cabrinha. Nem o Dário entra na casa. O irmão lobo. A princesinha na torre mais alta, sem portas, sem janelas e ninguém lhe ver ponta de nariz.

         Prevenido, Bento impôs as regras – Dário muito chegado, pois feche a porta pra ele Maria, diga que são ordens. Eu em casa ele venha, recebo lá fora. Se urgência, estou lá no açougue. O que Lili precisar informe, eu trago da rua. Moça honesta melhor dentro de casa. Quem pode com a língua do mundo? A Lili conformada. Entende que ele é o pai. Tem todo direito. Depois o que falta pra ela?

         O precioso colar de pérolas de marfim. O bracelete de prata, o pingente de lua. Pedia-lhe e ele não tinha impedimento. Concedia-lhe. Pedisse mais e ele alcançaria trazer o próprio céu estrelado pra Lili ficar onde lhe estivesse ao alcance. No domingo que era o dia que não saía de casa, comia o virado com a couve refogada da Maria. Bebia uma garrafa de cerveja e o banzo botava-o lânguido. Dormia a sesta. Lá dentro Lili com o bordado. No sonho vinha à menina felizinha sentar-se no seu colo e puxava-lhe a barba. Arrepio quente nos ossos. Num estupor molhava-se todo, vertido e semiconsciente exigia mais sonhos desses com a Lili.

         Mas no fundo do quintal o muro baixo, por ali entrou o lobo. Lili que ensinou – Nenhum risco Pedrinho, domingo de tarde, quem passa no beco? Eu atrás da jaqueira. O Barba Azul emparedado no quarto. No almoço encho o copo dele – bebe mais paizinho, semana servindo os outros, hoje cuido de você.

         __ E te espero como você já sabe Pedrinho... aquele vestidinho predileto, sem nada por baixo. O que tenho, nas tuas mãos.