Logo no carnaval
Quando tudo começou era de manhã cedinho e eu acordei e desci pela vereda do poço para esquecer-me daquilo caminhando pela margem do rio. Eu fazia isto com frequência, mas não esquecia nada.
A garrafa de absinto |
Então fiquei olhando a água parada e era uma água verde no leito do rio, mas transparente na concha das mãos. Parei e pensei – se as coisas começam a não ser completamente verdadeiras como a gente as ver então é impossível saber se elas não estão nos enganando quando se querem revelar.
Foi assim que eu pensei e depois pensei também que as pedras paradas na paisagem, os troncos fixos na terra, os pássaros voando no espaço, o vento passando na copa das árvores, os peixes dormindo na areia do rio, tudo isto que acontece sempre, que é tão constante que não exige esforço da mente, parece ser apenas uma forma de caminharmos pelo mundo sem tropeçarmos em nós mesmos.
Que digo eu assim pensando? –, o sol, a claridade do sol, o cheiro morno das flores e dessas ervas que crescem no pomar são alimento. Eu poderia sentar-me e esperar. Esperaria que um dia cada uma dessas laranjeiras gerassem um fruto e que esse fruto amadurecesse e as fruteiras solícitas exibissem seu fruto para as bocas ávidas de felicidade. E seria um fruto quente e afável que até eu colheria com minhas mãos e alimentando-me dele pensaria – afinal o mundo é bom, tem sol e rio e peixes e frutas.
Mas não era assim que o mundo se entregava, não era em flor e fruto que ele se abria e se oferecia a gente.
E como eu estivesse sentado no barranco não via lá em cima a estrada que conduzia toda gente. A estrada subia o morro, cortava a mata, seguia até em cima da serra. Por ali eu seria reconduzido ao lugar devotado. Mas agora eu tinha que ficar aqui, a avó determinara. E como havia sido a avó, impossível.
Acalmei meus pensamentos e concentrei-me na rigidez do barranco em que me sentara. Outras frutas também esperavam a sua vez de renascer em outros galhos de outras fruteiras. Agora estavam verdes, mas um dia eles estariam maduros e próprios. Mas nem peixes no rio, nem frutas crescendo me consolavam daquilo tudo.
Então eu fugia. Era evidente que toda a minha presença ali era uma enorme fuga, uma evasão pra não testemunhar nada. Eu queria estar sempre longe e imperturbável. Na distância em que não o ouvisse em que a sua figura não se apresentasse diante de mim.
E eu me deixava entregue às ideias tontas e ocas para não pensar nos dias infelizes que vínhamos vivendo todos os dias sempre. Ouvindo o sol parado sobre a superfície do rio e prestando atenção na erva que crescia na margem do rio, sentindo o cheiro das árvores no pomar e dos peixes distraídos que vinham se alimentar na margem do rio, eu acreditava que se não pensasse muito naquela coisa ela acabaria não existindo jamais.
Mas o ar estava sempre espesso, a tarde sempre estava pausada e a claridade tão reverberante que subitamente as ondas de vento me traziam o que insistentemente eu procurava afugentar, perder de mim.
Num salto ergui-me do barranco e caminhei até uma laranjeira próxima, encostei-me ao seu tronco duro e nodoso. Eu era um ser vivo e ela também. E tudo o que havia em volta de mim também respirava e vivia cautelosamente.
Foi então que eu me disse sem me ouvir nitidamente.
__ E ele é o meu pai – foi o que eu disse a mim.
Um fruto gordo e translúcido caiu da mangueira. Olhei sua polpa quente e dourada.
__ Hoje não há descanso pra ela – eu disse.
Lembrei que tinha uma mãe. Era minha mãe na via-crúcis. Olhei em volta e tateei mais silêncio, apalpei mais sol, tentei pegar mais da água corrente, não permitir que minhas trevas crescessem. Quando não pude mais voltar, desprendi-me do tronco da laranjeira e subi pra casa pela vereda do rio.
“Meu deus, está bêbado desde o começo da manhã, acho que já acordou assim.” – eu pensei isso enquanto me aproximava da casa.
“Quando anoitecer ainda estará assim, estará bêbado, sempre bem bêbado, há quanto tempo isso tudo nos acontece?”
Ao chegar atrás do tanque me desviei pelo pasto e contornei a casa. Ouvi ele falando. Era uma fala pastosa e autoritária. Eu tinha nojo daquilo. Nunca se passaria um dia na minha vida sem que eu não pudesse detestá-lo.
É incrível como o pai da gente. Se eu pudesse, mas avó era irremissível, tinha me determinado aquilo. Qualquer dia eu não sei se aguentava mais isto tudo.
Parei atrás da casa.
Pra onde agora?
Poderia voltar e caminhar pela margem do rio, me deitar nas pedras, entrar na mata, apanhar ingás. Poderia nunca mais voltar aqui, sumir, para onde mesmo? E logo agora a avó me tinha imposto aquela vida. E eu que vivia com os primos. Ah! então havia os primos – estes pensei – estes.
Mas então era carnaval.
Pensei sem, contudo, compreender porque tinha pensado naquilo que não tinha nenhuma consistência necessária.
No entanto, concentrei-me lentamente naquela outra possiblidade de ideia. Vagamente recordei dos primos se esfarinhando no meio da rua. Ainda mais vagamente pensei numa fantasia de rei-de-papel-crepom e cartolina que tinham posto lá na escola num menino já muito antigo.
Caminhei para frente da casa onde parei e contemplei-a velhíssima e com as varas expostas através do reboco se deteriorando. Encostei-me a parede, lá adiante a estrada passava, uma estrada vermelha, quem passasse pela estrada veria um rapaz dobrando-se sobre si mesmo, um animal agitando-se na jaula.
Aquele era André, aquele que sou. Um ser constantemente dobrando-se.
Era eu quem precisava encontrar um mecanismo que me levasse pra longe daquilo tudo.
Uma irmã passou pelo terreiro e eu vi que aquela também estava fugindo. Mas eu não tinha a proximidade fraterna necessária para me solidarizar com ela nem solicitar a solidariedade dela. Nós ambos queríamos apenas não estar ali. Fugir até que não o ouvíssemos e nem testemunhássemos aquela mãe no calvário.
Caminhei até a margem da estrada, observei o caminho. Rastros de outros seres na terra. Na minha frente erguia-se um barranco e uma ave de bico curvo e comprido tinha escavado um ninho lá. Aproximei-me para olhar, queria verificar como se podia viver sob a terra. Mas o pássaro não pode esperar-me e voou quando soube da minha aproximação.
Não desisti de olhar lá dentro do ninho. Quando cheguei à beira do buraco um raio de sol entrava e me deixou ver três bocas amarelas abertas. Ó deus! Eu pensei. Não sou eu o pai, não sou eu a mãe. Não somos iguais. Vocês crescerão e terão asas e eu não chegarei a ter nem mesmo pés alados.
Afastei-me daquele espetáculo, não era atraente, nem era curioso. Apenas três passarinhos famintos dentro dum buraco. Voltei para o terreiro da casa e me apoiei ao tronco crespo da algoroba.
O que acontecia agora determinava que eu nunca o perdoasse. E eu não compreendia como aquele que era um pai se houvesse entregado ao álcool nem como a mãe também tivesse ficado refém. No entanto, eu sabia que naquela casa todo mundo era um refém.
Eu poderia pensar em todas as minhas irmãs e logo concluiria que elas também viviam fugindo. Estavam todas espalhadas, pois a mãe se encarregara de providenciar que nenhuma estivesse sempre ali vendo o que acontecia naquela casa.
Quanto a mim, eu era André, e a mãe vivia desviando-o de mim, vivia prevenindo para que nunca nossos caminhos se cruzassem, para que essas duas forças nunca se batessem. Se não fosse a escolha da avó de impor a mim aquele tempo na casa eu não saberia nunca de nada. Mas e todo este desastre e todas estas vidas infelizes, jamais seriam também para mim?
A mãe e as irmãs sempre no tormento e eu nunca, pois nesta casa todos choram, todos têm seu quinhão de fel, mas a mãe quem vive acorrentada enquanto o corvo vem sobre ela.
Caminhei pra dentro de casa e estaquei no meio da sala, lá dentro, na cozinha, eu o ouvia. Pensei que pudesse ir lá, pedir-lhe – acabe com o tormento, não ver que ela não aguenta mais, que ninguém aguenta mais! –, mas só então voltei a descobri que eu tinha medo.
__ Maria, meu almoço – ele falava.
__ Você já comeu, ó homem – ela dizia.
__ Não comi nada, você quer me matar de fome Maria! –, ele falava.
__ Você almoçou e saiu – ela dizia – quando voltou se esqueceu que já tinha comido seu almoço.
__ Já disse que não comi nada, eu quero comer – ele dizia – traga já meu almoço, você pensa que eu sou o quê Maria?
Bêbado desde o começo da manhã, bêbado sempre. Peguei um livro e sai da casa pela porta da frente. Melhor que eu voltasse para a beira do rio, não podia ser no pomar porque lá ainda eu o ouviria, precisava fugir para um lugar aonde sua voz não chegasse, onde eu estivesse tão distraído que não pudesse nem pensar que ele existia e que todo aquele tormento não era real.
Caminhei para a estrada e desci-a pela ladeira que levava ao outro lado do rio. Quando cheguei à margem do rio entrei na mata e procurei o maior pedregulho em que pudesse fundir-me na solidez da rocha.
Sentei-me, o livro aberto, a página chamando-me, lá em baixo a água escorrendo entre as outras pedras, formando poços nas covas. Em volta, as árvores, os pássaros pousados, as folhas secas no chão, um mundo inteiro de tranquilidade e vento nos galhos.
“E se ao menos acontecesse àquela coisa que eu vinha pensando há algum tempo – sim, se acontecesse de repente que ele morresse, ah! meu Deus, como seria bom se.”
Mas Deus nunca olha para esse lado – eu disse – ouvi quando eu disse isto.
Fiquei naquele lugar até que não pude mais, porque em volta as coisas começavam a ficar escuras e eu estava muito cansado de estar ali.
Voltei pra casa e quando cheguei à frente do terreiro horrorizei-me com a tranquilidade pesada e tensa da casa. Mas então compreendi que ele tinha saído e os flagelos haviam cessado por um brevíssimo tempo. Aonde ele fora? – Fora beber mais álcool. Tinha dormido um sono reparador e acordara sempre, mas acordava outra vez com a necessidade de mais álcool.
Quando voltasse a casa seria muito pior. Entretanto, aproveitei sua ausência pra entrar na casa. Segui até a cozinha, a mãe tinha posto meu prato de janta no armário.
Onde a mãe?
Divisei-a no meio do quintal, estava de cócoras olhando a serra. A mãe, aquela mulher que mendigava um grão de felicidade. A mulher que desmoronara, mas ainda assim impunha a si a necessidade de ser, sobretudo ser uma fortaleza.
O que eu poderia falar-lhe? Não tinha que falar-lhe nada. Peguei o prato e fui comer na sala da frente. Comi sem pensar em quem me trouxera aquele alimento. Há muito era a mãe quem o provia. A mãe quem trabalhava de serviçal na casa daqueles vizinhos da Chácara.
Quando acabei de comer levei o prato para a cozinha, havia escurecido completamente. E a mãe voltava para dentro da casa com um maço de roupas limpas. Eu não queria vê-la. Retornei à sala. Ouvi vozes, e eram vozes alegres. Alguém ainda era feliz.
Então voltei a dizer-me que era carnaval.
Os homens da Chácara tinham montado uma roda e bebiam em conjunto. Alegravam-se pela segunda-feira e a terça-feira feriando. Havia alguma música lá no casarão e até as crianças também estavam alegres.
Agora nitidamente eu vi os primos no bloco do bairro. Mas os primos estavam tão distantes e tudo aquilo que eu recordava acontecera mesmo tão longe dali e se estivesse acontecendo outra vez não seria comigo que aconteceria. Só aos primos quem a avó não podia impor a decisão de – agora você vai ter de morar com os seus pais lá no Jaramataia.
Não chorei quando cheguei a casa, só depois me arrependi de tudo. Havia compreendido que a avó tinha decidido que não seria somente minhas férias e agora eu estaria ali pra sempre. Nunca mais acabaria a necessidade de ficar naquela família.
Olhei a noite que avançara tão subitamente que se fizera escura e estrelada. Não sei se haveria lua. Mas no carnaval sempre há um bobo reinando. Li isto num livro de Victor Hugo. Era dele aquele livro do Corcunda da catedral. Bom livro, mas ainda teria que lê-lo mais uma vez, ou então outras muitas vezes.
Há sempre um Corcunda reinando – meu Deus havia ainda um Corcunda reinando sim. Eu o vi. O Corcunda, o idiota era ele. Pulando no meio da roda dos homens da Chácara que bebiam. Fazendo cabriolas no meio do terreiro da Chácara. Era ele. Era ele. Era ele. Escuro, preto, bêbado, sob a luz pálida do poste, era meu pai. Tive ódio. Tive nojo. Tive raiva. Como podia? Como podia? Palhaço! Palhaço! Palhaço! Não um pai, um palhaço! Ter medo disto? Eu, medo disto? Entrei na casa. Que palhaço! Servindo de bufão para a roda toda. Vergonha! Vergonha! Vergonha! Não um homem! Nunca um homem! Perdeu-se completamente.
Voltei à porta, mas não saí pra o terreiro. Fiquei ao umbral. De repente vi que ele vinha caminhando para casa. Perseguia o cão. Queria o cão e trazia uma corda. Não saio daqui, não tenho nenhum medo dele. Palhaço dos outros, não um homem. Se rebaixa assim só para lhe darem um pouco de álcool!
__ Cadê o cachorro – ele perguntou.
__ Não vi nada – eu disse ríspido.
__ Como é – ele perguntou.
__ Não vi nada – eu repeti – não me importo com nada, seu – exclamei.
__ Cachorro! – gritou ele – me respeite.
__ Nunca – eu disse.
Ele avançou sobre mim. Defendi-me empurrando-o contra a parede, ele tropeçou, desequilibrou-se. Quando se recuperou do susto, quis arremeter outra vez pra mim, avancei, mas então já não pude mais atingi-lo, pois a mãe se atravessara entre nós, ele a empurrou, eu vi que ela caiu aos pés da parede, lancei-me sobre ele, derrubei-o.
__ Pára meu filho, eu não quero – a mãe gritou.
Corri para fora da casa, corri para a estrada. Fugi. Ainda estou fugindo.